Chile 1972-73: Revolução e contrarrevolução – Mike Gonzalez

Entre 1972 e 1973  o Chile vivenciou um processo histórico que condensou dois momentos extremos e antagônicos. Um processo que se inicia com a eleição do socialista Salvador Allende, um acontecimento ímpar que alimentou as esperanças por transformações a favor das classes exploradas e oprimidas, e terminou com um dos golpes mais sangrentos, dizimando dezenas de milhares de combatentes, além dos sonhos de uma sociedade justa e igualitária. As lições a serem extraídas dessa experiência são até hoje essenciais para todos os que lutam contra o capitalismo e por uma sociedade sem exploração e opressão. O texto que apresentamos é, em nossa opinião, uma contribuição inestimável para que não repitamos no futuro os erros do passado que levaram a tragédias como a do Chile.

CHILE 1972-73: Revolução e Contra-Revolução (*)

Mike Gonzalez

No dia 27 de outubro de 1972 caminhoneiros chilenos pararam seus veículos, em um ato consciente de hostilidade de classe. Não eram assalariados, mas sim proprietários de caminhões, alguns deles donos de frotas inteiras que transportavam mercadorias pelas estradas daquele país longo e delgado. Era uma greve patronal.

O tamanho limitado da rede ferroviária nacional lhes conferia um papel econômico crucial e uma força real (1), caso optassem por utilizá-la. Naquele mês de outubro a decisão do governo de nacionalizar uma pequena firma transportadora do extremo sul do país, em Aysen, proporcionou-lhes o pretexto para agir. A decisão da greve foi anunciada por Leon Vilarin, o líder da organização dos caminhoneiros. O próprio Vilarin, um advogado, era um conhecido político da extrema direita (2). Mas a greve não era simplesmente o produto de uma pequena conspiração. Era um movimento chave dentro de uma estratégia na qual os caminhoneiros cumpriram o papel de tropa de choque para uma classe decidida a reassumir o controle sobre o Estado chileno, controle que julgava haver perdido.

A greve de outubro iniciou uma nova fase naquela estratégia política e econômica. Os meses anteriores haviam presenciado um nível crescente de mobilização da classe média e algumas vitórias políticas contra o governo. Por volta de outubro os líderes da oposição de direita haviam julgado que o tempo era propício para lançar-se à ofensiva e derrubar o governo.

Quando isso ocorreu, os eventos tomaram uma direção inesperada, tanto para a burguesia chilena quanto para o governo de Salvador Allende. A vitória de Allende nas eleições presidenciais de 1970 colocara toda a cadeia de acontecimentos em movimento. Ele havia sido conduzido ao poder na maré das lutas da classe trabalhadora, à quais a burguesia havia sido incapaz de dar qualquer resposta. Assumindo oficialmente a presidência em dezembro de 1970, Allende iniciou uma série de medidas de reforma social e econômica bastante limitadas. Em si mesmas as reformas só eram ofensivas aos setores mais entrincheirados da velha classe dominante (3).

Mas a burguesia chilena via as reformas como uma ameaça política não tanto por seu conteúdo, mas pelo contexto no qual estavam sendo implementadas. A eleição de Allende havia sido o resultado de um crescimento da confiança política da classe trabalhadora, e essa vitória só fez aumentar essa confiança e a sua força. Nos primeiros nove meses do novo governo a direção política da burguesia estava em desordem: sua resposta política limitava-se a bloquear ações nos tribunais e no parlamento e a realizar atos de protesto e manifestações de descontentamento com o objetivo de reorganizar a sua própria classe.

Mas no final de 1972, os líderes ativos da direita – como Vilarin – julgaram que o apoio operário de Allende estava se enfraquecendo. Os sucessos econômicos do primeiro ano haviam dado caminho a uma crescente crise econômica que se manifestava em inflação, falta de investimento e uma diminuição intencional da produção (4). O governo Allende se encontrava em conflito crescente com os trabalhadores e camponeses que o haviam apoiado, à medida em que, com desespero cada vez maior, procurava assegurar à burguesia que estava preparado a fazer concessões sobre quaisquer reformas. A situação econômica tornava-se cada vez mais difícil, e as estratégias de defesa da classe dominante – basicamente uma diminuição sistemática tanto na produção quanto na distribuição, ao lado da recusa em investir – estavam agora dando lugar a uma tentativa mais sólida de gerar caos econômico. A greve dos caminhoneiros era parte deste esforço. Isso poderia ter sucedido – não tivesse a classe trabalhadora dado um salto no seu estágio político e tomado o controle das ruas e das fábricas. Por duas vezes em menos de doze meses as organizações da classe trabalhadora tomaram a iniciativa política e derrotaram, em confrontos diretos, a burguesia mobilizada. E por duas vezes os líderes políticos tradicionais dos trabalhadores, que compartilhavam o controle do Estado com Salvador Allende, provaram que eles próprios tinham mais medo da força e da organização dos trabalhadores chilenos do que de seus inimigos de classe. Os eventos chilenos fornecem um paradoxo dramático. A classe trabalhadora exercia seu poder diretamente em defesa de suas conquistas. Contudo, na medida em que essa defesa começou a crescer, transformando-se em um desafio ao próprio Estado burguês, a resposta da direção política tradicional do movimento operário foi a de chamar os militares para restaurar o poder daquele Estado. Assim era o contexto no qual uma classe dominante aterrorizada se moveria para a decisão mais bárbara e brutal da luta de classes – o golpe militar de 11 de setembro de 1973.

Nos anos após o golpe, o exemplo chileno tem sido usado em todo o mundo, tanto pelos partidos comunistas como social-democratas, como uma evidência de que nas condições de hoje qualquer processo de mudança deve estar limitado ao que é aceitável à burguesia – o “compromisso histórico”. Nesses termos, Chile tem sido usado para justificar a renúncia desses partidos à luta para levar a classe trabalhadora ao poder (5). Entretanto, tal conclusão implicou em falsificar e reescrever a experiência real daquele dramático período da luta de classes.

As limitadas promessas da Unidade Popular

Salvador Allende havia chegado ao poder como o representante de uma coalizão de seis partidos chamada Unidade Popular (UP). Era a sua sexta aparição como candidato de uma frente ampla deste tipo. Os principais componentes da UP eram o Partido Socialista, do qual Allende era um membro, e o Partido Comunista Chileno. Ambas as organizações podiam, com justiça, reclamar a condição de direção política da classe trabalhadora chilena. A hegemonia desses partidos era o produto de uma consistente história de luta proletária, iniciada com as heróicas greves dos trabalhadores das minas de nitrato na primeira década do século. O Partido Comunista Chileno foi fundado em 1920 por Luís Emílio Recabarren, um dos mais importantes organizadores revolucionários da América Latina. O Partido Socialista (6), formado no início dos anos 1940, também reclamava credenciais revolucionárias – de fato, mesmo em 1970, sua carta de princípios ainda proclamava seu compromisso com a derrocada armada do Estado capitalista. Mas ambos os partidos haviam demonstrado um firme engajamento em alianças eleitorais, formando amplas organizações frentistas em cada eleição presidencial de seis em seis anos. Mas as suas raízes na classe trabalhadora eram profundas, e foi isso que proporcionou os 36% de voto popular conquistados por Allende nas eleições de 1970.

Uma vez que, obviamente, Allende não conseguiu uma maioria dos votos, a vitória da sua coalizão Unidade Popular tem sido freqüentemente atribuída a divisões no interior da burguesia (7). Certamente as organizações burguesas haviam caído em brigas internas e faccionalismo após o insucesso da “Revolução em Liberdade” – o programa de desenvolvimento e reforma prometido pelo governo democrata-cristão de Eduardo Frei (1964-70). Mas uma explicação que se baseia nos insucessos burgueses ignora o papel ativo das classes laboriosas.

O insucesso do governo Frei em realizar as reformas prometidas havia posto em marcha um movimento operário crescentemente combativo. Em 1967, por exemplo, a revogação governamental da proibição de sindicatos rurais coincidiu com a aprovação da lei de reforma agrária. Essa medida havia se deparado com a resistência inflexível da oligarquia dos proprietários rurais, uma classe que Frei nem estava preparado para confrontar e nem desejava confrontar. A reforma agrária, cuja intenção era criar uma classe estável de pequenos agricultores, visava aliviar as tensões rurais. O resultado foi totalmente oposto. Aqueles que tiveram esperanças de se beneficiar com a reforma da terra, e que por esse motivo haviam votado na democracia-cristã, sentiam-se agora enganados. Por outro lado, os camponeses sem terra, aos quais nada havia sido prometido, já haviam iniciado uma onda de ocupação de terra.
Frei havia prometido crescimento industrial, e essa promessa atraíra os desempregados rurais para a cidade. Levas de migrantes rurais haviam se estabelecido anteriormente em áreas operárias, ocupando e habitando lotes vazios, começando a se organizar e a lutar pelo direito à moradia e serviços básicos (8). Essas organizações cumpriram um papel importante nos eventos de 1972-73.

Tanto os camponeses sem-terra quanto esses migrantes sem-teto se situavam fora das organizações tradicionais da classe trabalhadora e sua direção política. Estavam, portanto, abertos à influência política de um terceiro setor radicalizado naquele momento – o movimento estudantil. Em 1968-9 um grande movimento pela reforma educacional se desenvolvera no Chile, culminando em uma grande passeata em Santiago, capital do país. Mas outras correntes fluíram a esse movimento. Uma geração de jovens revolucionários havia sido influenciada pela revolução cubana de 1959 e por um romantismo revolucionário simbolizado por Che Guevara. No Chile essa corrente encontrou expressão na formação, em 1965, do MIR – Movimento de Esquerda Revolucionária. E se os experimentos reformistas de Frei haviam tentado fornecer uma alternativa de mudança não revolucionária, seu insucesso acabou por produzir um segundo grupo de jovens reformadores radicalizados: organizados no MAPU – Movimento de Ação Popular Unificado – e na esquerda cristã (9), suas principais energias haviam sido dirigidas à organização do programa de reforma da terra. Quando o governo Frei pareceu abandonar o seu compromisso com esse programa, o MAPU aderiu à coalizão da UP.

A crise do governo Frei não afetou apenas os setores que não estavam organizados anteriormente. Dentro do Partido Socialista uma divisão política de longa data se recolocou em um debate sobre o que deveria ocupar o lugar central nas atividades do partido: a organização sindical ou a eleição parlamentar (10). Esse velho debate não ressurgiu por acidente, mas sob a pressão de desenvolvimentos dentro do movimento operário. Em 1968 a federação sindical chilena, a CUT, havia convocado uma greve nacional de protesto contra os planos anti-greves do governo Frei. O sucesso da greve alimentou a combatividade da classe trabalhadora. Em 1968-69 os trabalhadores haviam sofrido aumentos de preços de cerca de 50%, desemprego crescente e respostas cada vez mais repressivas por parte do governo. As greves haviam aumentado em número, passando de 1.939 greves, envolvendo 230.725 trabalhadores em 1969, para 5.295 greves envolvendo 316.280 trabalhadores em 1970.

Esse era, então, o clima em 1970 quando Allende ganhou a eleição presidencial. O programa político da UP tentava reconciliar os interesses conflitantes das forças sociais que sustentavam a coalizão. Em qualquer caso, Allende propunha realizar somente aquelas reformas que pudessem ser realizadas sob a legislação existente, e que poderiam conquistar a aprovação de um congresso dominado pela direita. Isso colocou severos limites sobre o que era possível ser feito, e efetivamente permitiu que a direita determinasse o ritmo das mudanças. Dada essa perspectiva claramente eleitoralista, Allende não faria nada que o levasse a perder os eleitores de classe média – os alardeados “setores médios” que poderiam lhe dar uma maioria parlamentar. Paradoxalmente, ele poderia ganhar seus votos somente na medida em que o governo fosse capaz de mostrar sua capacidade de controlar e refrear a atividade da classe trabalhadora.

No plano econômico, a UP pretendia completar o programa inacabado de Frei, de crescimento e modernização pelo aumento do consumo através de um aumento salarial geral, reativando desse modo boa parte da capacidade industrial ociosa do Chile. Na agricultura, Allende incumbiu-se de levar adiante a lei de reforma agrária de 1967, sem alterar nada, incluindo as reservas para generosas indenizações aos proprietários, ao lado da garantia de que estes poderiam manter para uso próprio os quinhentos acres mais ricos e o melhor do maquinário agrícola.

O elemento central do pacote da UP, entretanto, era a nacionalização sem indenização das minas de cobre de propriedade norte-americana (11). Embora as companhias norte-americanas não investissem nada há alguns anos, a nacionalização deu ao governo Allende o controle sobre a principal indústria de exportação do Chile. Por outro lado, ao mesmo tempo em que o programa total da UP abrangia a nacionalização dos interesses industriais e financeiros chaves do país, ele deixava a maioria das empresas em mãos privadas (12). A UP esperava passar ao setor estatal apenas 150 das 3.500 firmas industriais, representando 40% da produção total, e, mesmo assim, essa figura foi reduzida mais tarde.

Não havia nada de revolucionário no pacote da UP, apesar das afirmações da mídia do mundo todo de que o Chile havia eleito seu primeiro presidente “marxista”. Seu conteúdo diferia pouco do programa de reformas de Frei, sendo um plano keynesiano ortodoxo para reativar a economia. Não continha nenhum desafio ao domínio do capital privado. Pelo contrário, deu à burguesia industrial um conjunto de garantias e proveu os proprietários de terras com generosas indenizações.

A real diferença entre a UP e Frei estava na relação da UP com a classe trabalhadora. Sua principal contribuição para a recuperação capitalista chilena era de que podia controlar a classe trabalhadora e exigir apoio dos trabalhadores para o programa de crescimento econômico.

Mas mesmo isso não era suficiente para acalmar as suspeitas burguesas. Assim, como prova final de seu respeito pelo Estado burguês e de seu compromisso com a sua sobrevivência, e em troca da permissão dos partidos de direita para que assumisse a presidência em novembro de 1970, Allende assinou um “Estatuto de garantias” (13). Esse documento prometia que o governo Allende respeitaria o Estado e suas estruturas e deixaria intactos todos aqueles instrumentos que a burguesia havia desenvolvido para defender seus interesses de classe – o sistema educacional, a Igreja, os meios de comunicação de massa e as Forças Armadas. O Estatuto foi mantido praticamente secreto e nunca foi apresentado aos apoiadores da UP. Sua existência torna cínicas e ocas as afirmações feitas por alguns teóricos do Partido Comunista, de que a UP havia “capturado parte do poder”, a partir de onde poderia lançar um assalto sobre as restantes instituições do Estado. Na realidade, o Estatuto era uma promessa de não realizar nenhuma transformação fundamental na sociedade chilena.

Assim, a estratégia da UP presumia uma colaboração entre o capital privado e o Estado para alcançar um crescimento econômico. Alguns bancos e companhias de seguro, assim como as minas de cobre, seriam nacionalizados, mas o governo também ofereceria um conjunto de subsídios estatais ao capital privado. A meta de longo prazo era uma economia mista de três setores – estatal, privado e misto.

A estratégia da UP envolvia, é claro, uma colaboração paralela no plano político. Quando Allende falava de “poder popular” em seus discursos presidenciais iniciais (14), ele certamente não estava se referindo a qualquer iniciativa pela base ou a qualquer luta pelo poder dos trabalhadores. O Estatuto de garantias e o permanente diálogo de Allende com a burguesia, ao lado de seus contínuos chamados por calma e auto-disciplina da classe trabalhadora, deixou a iniciativa política à burguesia. Organizações como aquelas que foram formadas com o apoio do governo nos primeiros meses de 1971 eram essencialmente instrumentos para realizar ou ganhar apoio para as medidas governamentais – como era o caso dos comitês locais de suprimentos e distribuição (JAPs) ou os “núcleos” da UP, os comitês da UP. Certamente, as muitas referências de Allende ao “poder popular” em seus primeiros meses de governo significavam uma aceitação inquestionável das decisões da direção da UP.

Murmúrios de Descontentamento

Durante o seu primeiro ano de governo, Allende permaneceu com a credibilidade praticamente intacta. Contudo, tensões não resolvidas permaneciam sob a superfície. Pois se a vitória eleitoral havia sido uma resposta a um nível crescente de luta, ela também encorajava a idéia de que era possível obter conquistas através de lutas. Muitos setores operários e camponeses não viam razão para que a chegada de Allende ao palácio presidencial envolvesse a sua desmobilização. As organizações dos camponeses sem terra, por exemplo, encorajadas pelo compromisso da UP com a reforma agrária, intensificaram suas ocupações de terras. Em maio de 1971 Allende conclamou-as a pararem de ocupar terras e a esperarem o processo legal. Ele também chamou a direção do MIR, que gozava de influência sobre as organizações dos camponeses e moradores da periferia, e repreendeu-a por agir por fora dos marcos da lei.

Nesse momento, Allende desejava discutir a questão, mas os seus ataques, assim como os de seus colegas, a essas e outras iniciativas independentes intensificaram-se à medida em que ia passando o primeiro ano. As organizações operárias, por outro lado, geralmente exibiram mais obediência. Houve poucos atritos entre os trabalhadores organizados e o governo na primeira metade de 1971. Isso porque, de um lado, os partidos da UP controlavam firmemente os sindicatos, e, de outro, os membros dos sindicatos haviam sido os principais beneficiários dos aumentos salariais e dos novos empregos resultantes da reativação da economia. No primeiro ano os salários dos trabalhadores manuais subiram cerca de 38%, e os dos trabalhadores não manuais cerca de 120%. O desemprego caiu para abaixo de 10%, e o PNB subiu cerca de 8% (15).

A relativa tranqüilidade dos primeiros meses era simplesmente a calma antes da tempestade. A burguesia estava somente cicatrizando suas feridas, esperando o momento adequado para um contra-ataque. Os industriais do Chile não haviam deixado 1971 passar em branco. Eles exportaram o tanto quanto possível de seus capitais e não reinvestiram nada – em muitos casos os subsídios governamentais eram os únicos fundos que entravam nas fábricas(16). O crescente padrão de vida dos trabalhadores acarretou um aumento dramático na demanda de consumo e numa conseqüente escassez de produtos exacerbada pela sistemática estocagem de bens pelas classes médias. A atmosfera de escassez e insegurança proporcionou à burguesia as circunstâncias nas quais lançariam seu primeiro desafio a Allende.

O momento foi escolhido cuidadosamente. Em novembro de 1971 Fidel Castro visitou o Chile. No segundo dia de sua visita ele foi saudado por uma manifestação, a “marcha das panelas vazias”. Organizada pelos partidos de direita, centenas de mulheres de classe média saíram às ruas brandindo panelas vazias para simbolizar a escassez. A ironia é que muitas delas levavam consigo suas empregadas – provavelmente para ajudá-las a carregarem as panelas que poucas das senhoras presentes haviam usado alguma vez. Mas por trás dos protestos contra a escassez de bens havia um outro propósito, de maior alcance: mobilizar as classes médias, alertar a burguesia em escala internacional sobre as batalhas vindouras, e expressar o ceticismo burguês quanto à capacidade da UP de conter a classe trabalhadora.

Tanto isso era verdade que, apesar dos apelos da UP e dos seus ataques pouco velados contra grevistas e posseiros, Allende não havia sido capaz de controlar inteiramente o movimento operário. Entre janeiro e dezembro de 1971 o número de greves chegou a 1.758, e houveram 1.278 invasões de terra (17).

Os partidos burgueses responderam com ataques ao governo, buscando o impeachment do ministro do interior, Jose Toha, e bloqueando medidas de nacionalização no parlamento. Fora do parlamento eles se queixavam das “ocupações ilegais [as quais não eram] somente o trabalho da ultra-esquerda; eram também as ações espontâneas de grupos de camponeses, trabalhadores e mineiros” (18).

Curiosamente, Allende e seus inimigos concordavam neste ponto: de que a maior ameaça ao diálogo – sobre o qual se baseava sua estratégia – era a ação independente da própria classe trabalhadora! O plano econômico da UP para 1971 foi amplamente discutido com os grupos de oposição e com organizações profissionais e tecnocráticas. Em nenhum momento, contudo, ele foi discutido publicamente ou submetido à aprovação dos sindicatos. Era pouco surpreendente, portanto, que os trabalhadores respondessem ao crescimento do mercado negro, à escassez e à retomada da inflação, com a reativação de suas tradicionais organizações de luta – em particular os sindicatos – para proteger os ganhos conquistados.

Fissuras na Coalizão

Ao começar o segundo ano do governo da UP, a ofensiva da direita e a correspondente resposta dos trabalhadores, provocou um novo debate. Pois enquanto Allende reagia a esses acontecimentos tentando atenuar os temores burgueses, tensões surgiram nas relações da UP com seus próprios apoiadores, provocando questionamentos fundamentais sobre o chamado “caminho chileno para o socialismo”. Duas estratégias muito diferentes coexistiam dentro da UP, e os fatos agora exigiam uma resolução. Deveria a UP apoiar os trabalhadores em sua luta para defender seus padrões de vida e impedir que a burguesia minasse os seus ganhos do ano anterior, ou não? E se sim, que estratégia política tal apoio implicaria?

Esta era a questão central com que se deparavam os representantes políticos das organizações da UP quando se reuniram numa conferência em El Arrayan em fevereiro de 1972, e novamente na conferência em Lo Curro em junho. O debate sobre a estratégia futura da UP estava centrado na questão rotulada como “consolidar ou avançar”. A ala direita argumentava sobre a necessidade de deter o processo de reformas, consolidar o que havia sido ganho, e buscar um apoio eleitoral mais amplo antes de seguir em frente. Efetivamente isso hipotecaria o “caminho chileno para o socialismo” aos setores de classe média, a quem a direita devotava tanta atenção. A esquerda advogava acelerar o ritmo das reformas, aprofundando o processo de nacionalização e tomando a dianteira das lutas. A classe trabalhadora, argumentavam, havia mostrado que estava pronta para levar a luta adiante: seus líderes políticos ousariam tomar a dianteira da classe?

Durante todo o debate ninguém argumentou que qualquer organização devesse atuar por fora da UP (19). A discussão sempre se dava em torno do que a UP deveria fazer, a partir de sua posição dentro do Estado.

O Partido Comunista e a ala direita do Partido Socialista, sob a direção de Allende, argumentaram que o governo não deveria ir adiante na expansão do setor estatal; deveria reafirmar sua disposição em negociar com a burguesia, demonstrando na prática que poderia controlar a classe trabalhadora. E deveria buscar um amplo consenso para a sua política. Um tal compromisso, esperava-se, levaria a burguesia a respeitar os ganhos já adquiridos – embora os fatos já tivessem demonstrado que o oposto era verdadeiro.
O contra-argumento veio do MAPU, da esquerda-cristã e da esquerda do Partido Socialista – com o apoio do MIR, embora essa organização não estivesse presente nas discussões. A esquerda urgia pela necessidade de estender o setor público, reafirmar o compromisso original da UP de nacionalizar as noventa maiores firmas – por decisão governamental esse número havia sido reduzido para 43 -, e se engajar ativamente em uma luta ideológica para ganhar novos apoios.

Os desacordos entre as alas esquerda e direita eram mais quantitativos do que qualitativos. Seu “radicalismo numérico” nunca as levou a questionar a relação entre o Estado e o capital privado, nem o controle e a direção da economia como um todo. Toda a esquerda parecia concordar que “parte do poder” havia sido conquistada, ninguém expressou preocupação sobre as outras “partes do poder” que Allende havia garantido à burguesia. Com freqüência a ordem do dia era preenchida com retóricas confusas. O MAPU conclamava o governo a “usar o aparato estatal com estilo de massas”. Dificilmente uma política alternativa clara! A indecisão do MAPU já havia se revelado na sua própria conferência nacional em janeiro de 1972: a organização havia dado apoio vigoroso a um novo plano conjunto CUT-UP para a participação dos trabalhadores na indústria, o que na realidade era um recuo da nacionalização; e havia se juntado com o resto da UP condenando o “ultra-esquerdismo” do MIR. Sua lealdade, afinal, era com a ala esquerda ou com a ala direita? (20)

Lendo as discussões e debates que ocorreram nas conferências da UP dá-se conta do crescente senso de irrealidade. Os bons e comovedores discursos ignoravam o fato de que a futura direção do processo político chileno estava sendo determinada fora do Congresso e bem longe do palácio presidencial de La Moneda. Em janeiro, antes da conferência em El Arrayan, Allende já havia se rendido às exigências de que Jose Toha fosse impedido por ter insultado as forças armadas, e aceitara a sua renúncia. Em março, Kennecott – uma companhia norte-americana de cobre cuja filial chilena havia sido nacionalizada – convocou um boicote mundial ao cobre chileno; e o senador democrata-cristão Carlos Hamilton apresentou ao Congresso a primeira de uma série de moções destinadas a paralisar quaisquer nacionalizações futuras. A resposta de Allende a essas ações foi tão débil que, em abril, sentiu-se obrigado a fazer um movimento conciliatório em direção à esquerda da UP, abrindo conversações formais com o MIR como um gesto para a esquerda em geral – embora não demonstrasse nenhuma intenção de solucionar suas diferenças estratégicas com o MIR.
No dia 12 de maio o esboço do que estaria por vir foi claramente revelado em um incidente na grande cidade industrial de Concepcion. Uma organização estudantil de direita anunciou sua intenção de marchar sobre a cidade. Uma contra-manifestação foi chamada por várias organizações de esquerda, incluindo o MIR. O prefeito comunista decretou então uma proibição geral a quaisquer passeatas e chamou a polícia anti-motim para reprimir a contra-manifestação. A conseqüente violência resultou na morte de um apoiador do MIR. A resposta do governo, através de seu porta-voz comunista, Daniel Vergara, foi a de condenar a violência, seja da esquerda ou da direita (21).

Também em maio, um congresso nacional dos trabalhadores têxteis rejeitou a participação dos trabalhadores e, ao invés disso, exigiu o controle dos trabalhadores sobre a indústria. A resposta a isso veio em junho, com o anúncio de um novo gabinete da UP que notavelmente não incluía Pedro Vuskovic, um independente de esquerda cuja identificação pública com uma política de avançar as nacionalizações haviam-no tornado um alvo favorito da direita.

No mesmo mês a conferência da UP sobre estratégia foi de novo realizada em Lo Curro, onde a ala direita conseguiu assegurar uma vitória. Uma razão disso foi que a esquerda não tinha uma alternativa clara para oferecer, mesmo com os socialistas da ala esquerda tendo começado a discutir em Lo Curro algumas das demandas por uma “Assembléia Popular” ou “poder popular” que haviam vindo à tona no congresso dos trabalhadores têxteis (22). Ao mesmo tempo, retomou conversações com os democrata-cristãos (eles haviam sido temporariamente suspensos um mês antes) e reafirmou seu compromisso em perseguir a paz social e o domínio da lei. O que isso significava na prática foi, entretanto, dramaticamente revelado em Melipillia, próximo a Santiago durante o mês de junho de 1972.

Várias das fazendas da área eram grandes o suficiente para serem expropriadas com base na lei de reforma agrária. Mas o juiz local, Olate, havia colocado reiteradamente obstáculos legais no caminho da redistribuição de terra, colaborando consistentemente com os proprietários locais. No dia 22 de junho uma manifestação no centro da cidade levou à prisão de vinte e dois membros dirigentes da organização dos trabalhadores rurais. Uma série de protestos ocorreram em seguida. No dia 30 todas as estradas que davam acesso à cidade foram bloqueadas. No dia 12 de julho uma manifestação de massas marchou para o centro de Santiago exigindo a libertação dos vinte e dois e a demissão imediata do juiz Olate. O governo recusou-se a intervir (23).

Os incidentes em Melipillia tinham um significado muito mais profundo do que pareciam ter à primeira vista. No curso dos protestos trabalhadores da área industrial vizinha de Cerrillos juntaram-se aos seus camaradas rurais na luta. Cerrillos mesmo era palco de uma série de disputas industriais não resolvidas: no final de junho as fábricas têxteis Perlak e Polycron, a fábrica de alumínio Las Américas e a avícola de Cerrillos estavam todas em greve. Os grevistas agora uniam-se a seus irmãos e irmãs de Melipillia. Um trabalhador agrícola disse: “Nós temos pessoas para alimentar e famílias para manter. E já estamos fartos desta situação” – e seu entrevistador notou que os trabalhadores rurais e urbanos com os quais estava conversando concordavam em que “o parlamento não representa seus interesses”. Os manifestantes ao mesmo tempo em que gritavam o seu apoio a Allende, afirmavam que o Congresso e outras instituições estatais eram o principal obstáculo para realizar o programa da UP.

Contudo a ação conjunta de trabalhadores agrícolas e industriais abriu novas e diferentes possibilidades. Da luta conjunta emergiu uma nova forma de organização, forjada no curso das greves de Cerrillos e que se autodenominava cordon industrial. Um outro cordon desenvolveu-se na área de Vicuña Mckenna. O cordon de Cerrillos publicou uma declaração no começo de julho. Suas demandas por controle da produção pelos trabalhadores e a substituição do parlamento por uma assembléia de trabalhadores foram muito mais além do que qualquer coisa que havia sido discutida abertamente pelos partidos da esquerda. Contudo, nesse estágio o cordon era ainda descrito pela revista Chile Hoy como um comitê para manter a produção e implementar decisões governamentais na economia. Seu potencial como uma base alternativa de organização social e política não havia ainda passado pela cabeça de ninguém (24).

O Partido Comunista e a ala direita do Partido Socialista ordenaram a seus membros a se afastarem dos cordones. Todas as ações, argumentavam, deveriam ser coordenadas pela direção sindical oficial, a CUT. Isso refletia a linha “consolidacionista” que havia triunfado na conferência de Lo Curro. Para a ala direita não haveria futuras incursões contra o capital privado, não mais desafios ao Estado. As concessões à burguesia, afirmava Allende, assegurariam o seu respeito por procedimentos constitucionais.

Parecia que apenas os próprios trabalhadores haviam se dado conta de que a luta de classes não pára – que o único modo de defender o que havia sido conquistado era intensificar a luta. A alternativa era permitir que a burguesia lutasse para reconquistar o que havia perdido. Paradoxalmente o crescente apoio popular à UP, que se refletiu tanto nos resultados da eleição suplementar em Coquimbo em julho e nas eleições para a executiva da CUT (25), expressava uma compreensão entre os trabalhadores. A ala direita da UP, entretanto, interpretava esse apoio de modo diferente – como se representasse uma aprovação à estratégia de colaboração de classes.

As contradições da situação estavam se tornando crescentemente visíveis, à medida em que sucessivos incidentes levaram o governo ao confronto com setores de trabalhadores, camponeses, estudantes ou habitantes de favelas. Em julho, membros de um grupo de ultra-esquerda que haviam realizado um assalto a banco foram apanhados e torturados pela polícia de segurança, à cuja cabeça estava Contreras, indicado pessoal de Allende. Nas áreas mineiras, o governo respondia a greves que envolviam questões locais invocando o estado de emergência, com o efeito de que as áreas mineiras eram colocadas sob controle militar direto.
No dia 18 de agosto policiais e militares atacaram o aglomerado de favelas Lo Hermida, em Santiago (26). Eles estavam procurando ostensivamente por um grupo guerrilheiro de ultra-esquerda. De fato, Lo Hermida era politicamente uma terra de ninguém para a UP. Ali, como em outras áreas de favelas e cortiços, o MIR desfrutava de uma posição política dominante através de organizações frentistas como o “Movimento Revolucionário de Favelas” (27). A operação policial se deparou com uma resistência de massas. Eles recuaram e retornaram no dia seguinte com 400 homens armados. O ataque que se seguiu deixou uma pessoa morta, uma outra fatalmente ferida, 11 feridos e 160 presos. Embora Allende mais tarde tivesse se dirigido com desculpas a Lo Hermida pelo ataque, o fato é que o governo havia usado o incidente para atacar a esquerda revolucionária, alertar todos aqueles que estivessem começando a agir por fora do arcabouço constitucional, e reafirmar à burguesia a determinação do governo em garantir a lei e a ordem. Para a própria burguesia, ataques como os de Lo Hermida eram escaramuças iniciais nas quais se podia testar a força e a capacidade dos militares para agir diretamente.

Para Allende a questão central era a autoridade política da UP. Embora a UP sem dúvida possuísse a hegemonia política no movimento operário, a luta em si colocava questões políticas que não podiam ser respondidas nos marcos do reformismo da UP. Se as organizações operárias e camponesas fossem desmobilizadas e desbaratadas porque se situavam fora do controle da UP, que garantias o governo poderia oferecer de que o direito ao protesto e à manifestação não seria atacado pela polícia ou ameaçado por grupos armados de direita? Iria Allende desafiar os proprietários das fábricas e fazê-los parar de fechar ou sabotar suas fábricas se os próprios trabalhadores não o fizessem? Iria Allende tomar a dianteira do lado dos trabalhadores na luta de classes caso ela se intensificasse, ou continuaria tentando cumprir o papel de árbitro?

Foram justamente essas questões que dominaram a Assembléia Popular realizada em Concepcion no final de julho, quando cerca de 3.000 delegados se reuniram para discutir a conjuntura política (28). Eles representavam um amplo conjunto de organizações sindicais, populares e estudantis, assim como as organizações da esquerda. O único ausente era o Partido Comunista, que descreveu a Assembléia de Concepcion de um modo que seria consagrado pelo tampo, como “uma manobra da reação e do imperialismo, usando elementos da ultra-esquerda como cobertura”. O próprio Allende em um comunicado de 31 de julho, desenvolveu a mesma idéia:

“Pela segunda vez em três meses Concepcion foi o palco de uma ação divisionista cujo efeito é minar a homogeneidade do movimento da Unidade Popular. Não há dúvida em minha mente de que é um processo que serve aos inimigos da causa revolucionária”.

No mesmo discurso ele definiu com absoluta clareza o seu compromisso com a democracia burguesa e sua oposição ao desenvolvimento de um poder dual “que em outras situações históricas surgiu em oposição a uma estrutura de poder reacionária que não tinha nem base nem apoio social”. No Chile, argumentava ele, a criação de órgãos de poder dual era um ato de “crassa irresponsabilidade”, porque o governo do Chile representava os interesses da classe trabalhadora como um todo. Nenhum revolucionário sensato, concluía ele, pode “ignorar o sistema institucional que governa nossa sociedade e que faz parte do governo da Unidade Popular. Qualquer um que sugira outra coisa deve ser considerado um contra-revolucionário” (29).

No interior da própria Assembléia houve desacordos, especialmente no tocante à relação com Allende. Enquanto o MAPU e a esquerda do PS acreditavam que a Assembléia deveria exercer pressão organizada sobre o governo para levar adiante o seu programa, o MIR chamava pela elaboração de um programa revolucionário. Porém, mesmo o MIR era cauteloso em suas conclusões, e em nenhum momento chamou pela formação de uma nova organização revolucionária, construída a partir das organizações de luta representadas na Assembléia. Ainda não havia o reconhecimento de que o ritmo acelerado da luta e a sua generalização exigiam algo mais do que simples apoio. A lógica dos eventos apontava para a questão do próprio Estado: que interesses ele representava e defendia? Contudo essa questão só poderia ser posta por uma direção revolucionária preparada para colocar a questão do poder na ordem do dia.

Poucas semanas depois os incidentes de Lo Hermida tomaram um novo e retrospectivamente sinistro significado, quando mais uma vez foi decretado estado de emergência, desta vez na província de Bio Bio, onde manifestantes se mobilizaram para defender uma emissora de rádio pró-governo que estava sob ataque da direita. Estava tornando-se claro que Allende estava preparado para usar o Estado contra seus próprios apoiadores, e chamar o exército e a polícia para restaurar a lei existente e a ordem burguesa (30).
Apesar das tentativas de deter o processo, a luta de classe estava rapidamente saindo do controle de Allende e da UP. A burguesia via suas vacilações como um fator a seu favor, e organizou abertamente uma campanha de oposição política e de sabotagem econômica . No final de julho o padre Hasbun, de extrema direita, começou a lançar, através do canal 9, chamadas por ação militar contra Allende.

Os líderes da UP, condenando a violência e a guerra civil, conclamavam a classe trabalhadora a que deixasse o governo responder aos ataques da direita. Mas o governo já tinha mostrado que longe de responder a essas ameaças ele simplesmente cedia diante delas e depositava sua fé na polícia e nos militares. Assim, ao final de setembro, quando Allende anunciou uma Lei de Controle de Armas, ele se dirigia claramente às organizações de trabalhadores, e confiou ao exército a tarefa de desarmá-las. Nenhuma dessas concessões surtiu o efeito esperado por Allende. Pelo contrário, cada vez que a direção dos trabalhadores declarava a sua falta de vontade de lutar, a burguesia se tornava mais confiante e certa de que a classe trabalhadora não ofereceria resposta aos seus ataques.

Havia certamente confiança nos círculos da classe dominante quando em setembro os lojistas do Chile lançaram uma greve de protesto contra o controle de preço e a falta de produtos. Essa confiança foi ainda maior no dia 11 de outubro, quando os caminhoneiros anunciaram o começo de uma greve por tempo indefinido.

Eles estavam por ter um duro choque – não de Allende e seus aliados, que continuavam a negar que uma luta fundamental pelo poder estava colocada, mas sim da classe trabalhadora, que tomou o controle direto sobre a luta e gerou um conjunto de novas formas de organização que ofereciam um vislumbre de como a luta pelo poder dos trabalhadores deveria ser conduzida e poderia ser ganha.

A Insurreição da Burguesia

A greve dos proprietários de caminhões havia sido bem planejada. Embora tivesse a aprovação geral de toda a burguesia, a organização neofascista “Pátria e Liberdade” estava mais diretamente envolvida em sua organização efetiva. Membros desse grupo forneceram guardas armados em locais fortificados nos limites de todas as principais cidades chilenas aonde os caminhoneiros pararam no dia 11 de outubro.

A greve não era nem inesperada nem particularmente secreta. A greve dos lojistas em setembro e a bem organizada resistência da direita no Congresso a qualquer iniciativa da UP já haviam dado claros sinais do que estava por vir. De qualquer modo, dois jornais de esquerda haviam fornecido informação detalhada sobre a greve (seu nome de código era “Plano Setembro”) quinze dias antes de ser deflagrada (31). Se ainda restasse alguma dúvida, um comício de massas da direita no dia 10 de outubro em Santiago fora notável por sua atmosfera frenética e pelas chamadas repetidas por todos os oradores por mobilização de massas contra o governo. Um desses oradores era Vogel, um democrata-cristão vice-presidente da CUT.

Mas nem Allende nem a UP ofereceram qualquer resposta. Nos meses anteriores Allende havia resolvido cada crise potencial chamando o exército para restaurar a ordem. Agora, contudo, com a ameaça da greve dos caminhoneiros, parecia que Allende estava deliberadamente ignorando os preparativos da direita, fazendo de conta que nada estava acontecendo. Parecia que o seu medo da atividade independente de massas era maior do que a sua preocupação com a oposição da direita ao seu governo.
Esperava-se que o impacto da greve fosse imediato. A ausência de transporte rodoviário poderia ter interrompido todos os fornecimentos – de alimentos, peças de reposição, matérias-primas, e especialmente a distribuição de alimento para a classe trabalhadora. E mais, a greve não ocorria em isolamento. Os lojistas expressaram seu apoio à greve fechando suas lojas, os industriais tentaram parar suas máquinas, se necessário por sabotagem. As organizações profissionais de médicos, advogados, dentistas e outros votaram pela adesão à greve e suspenderam toda a atividade, aumentando a atmosfera de pânico. Essa era de fato a estratégia da direita: usar o seu poder econômico – um poder que ainda estava amplamente intacto – para criar escassez e caos econômico. A suposição era de que o pânico resultante forçaria Allende a renunciar ou, melhor ainda, iria deixá-lo no poder para impor as necessárias medidas de austeridade, tornar-se completamente alienado da base de massas da UP e finalmente sofrer uma derrota estrondosa nas eleições para o Congresso em março de 1973.

Se essa estratégia falhou, foi inteiramente graças à classe trabalhadora. Para os trabalhadores a situação era igualmente clara. O problema imediato era manter o sistema de transporte, manter as fábricas abertas e assegurar o fornecimento de alimentos e necessidades. Grupos de trabalhadores foram às ruas na primeira manhã; cada forma de transporte disponível era requisitada e dirigida por voluntários. Nas fábricas foram formados comitês de vigilância contra sabotagens, e a produção foi mantida. Nas regiões operárias, longas e pacientes filas formavam-se diante dos armazéns e supermercados; ou os proprietários eram persuadidos a abri-los ou, caso contrário, os estabelecimentos eram abertos e mantidos abertos pelas próprias pessoas da localidade, as quais montavam guarda permanente. Na Santiago central, mais de 8 mil pessoas se apresentaram como voluntários para motoristas, enquanto muitos dos cordones enviaram grupos de pessoas para “retomar” os caminhões (32).

A primeira resposta do governo foi caracteristicamente confusa, além de gerar confusão. Allende clamou pela manutenção da produção, mas então voltou-se imediatamente para negociar com os caminhoneiros. Sua escolha do intermediário – a organização dos proprietários de ônibus municipais – mostrou ser menos que confiável: Eles próprios aderiram à greve dos caminhoneiros uma semana depois. A linha geral da UP era a de pedir disciplina, calma e obediência ao sindicato oficial e às organizações políticas. Mas nem a CUT nem a UP forneceram quaisquer instruções específicas, e de fato a chamada inicial por mobilização de massas em resposta à greve foi retirada dois dias depois.

Os problemas provocados pela greve, entretanto, exigiam uma solução imediata. Era pouco surpreendente que as respostas mais rigorosas e decisivas viessem de áreas que já haviam desenvolvido organizações conjuntas de trabalhadores. As fábricas que haviam tomado parte nos primeiros cordones foram capazes de se organizar mais rapidamente e tomar a iniciativa de organizar outras. Elecmetal, do cordon de Vicuña Mckenna, e nas fábricas Perlak, Lucchettipasta e Cristalerias Chile, parte do cordon de Cerrillos-Maipu tiveram um forte papel de liderança. Suas demandas eram radicais e agudamente definidas, ecoando o programa avançado em junho: ação imediata contra os patrões, incluindo nacionalização imediata. Ao mesmo tempo, outros estratagemas desenvolvidos pelos capitalistas exigiram – e encontraram – uma rápida e criativa resposta.

Na fábrica de vidro Cristalerias Chile, por exemplo, a gerência congelou a conta bancária da companhia. Os trabalhadores responderam desenvolvendo um sistema de distribuição direta. Como um trabalhador explicou, “agora nós vendemos diretamente para as cooperativas e pequenos negócios e eles nos pagam em dinheiro, assim nós podemos pagar os salários sem ter que usar os bancos.”(33)

Na fábrica de cimento El Melon, uma greve em andamento foi imediatamente terminada e seus trabalhadores retornaram ao trabalho. Na fábrica têxtil Perlak, para compensar a falta de leite do campo, os trabalhadores organizaram uma sopa altamente nutritiva para suas crianças. Os trabalhadores da Polycron levaram os tecidos para as áreas operárias e os vendiam diretamente. Matérias-primas e produtos acabados começaram a ser trocados entre fábricas, mas também entre operários e camponeses.

Quando a associação dos médicos anunciou o seu apoio à greve no dia 17 de outubro, um comitê conjunto de trabalhadores de hospitais foi formado para manter os hospitais funcionando. Um organizador sindical explicava: “Apesar da greve ordenada pela direita, as 600 mil pessoas pelas quais este hospital é responsável verão que nós podemos fornecer serviços melhores e mais eficientes trabalhando junto com os comitês de saúde locais que incluem pessoas dos distritos operários.” (34)

A reunião do sindicato dos jornalistas, naquele mesmo dia, foi dedicada a uma denúncia do papel da imprensa burguesa e a chamadas por novas iniciativas contra a mídia de direita. O jornalista Jaime Muñoz criticou o Estatuto de garantias assinado por Allende em 1970, que prometia respeitar a propriedade existente dos meios de comunicação de massa (35). Ele contrastou o papel da mídia de direita com a resposta dos trabalhadores de dois jornais, o “La Mañana” de Talca e o “Sur” de Concepcion, que haviam ocupado e tomado suas respectivas oficinas porque seus jornais estavam constantemente atacando o movimento operário. “O único estatuto de garantias que nós reconhecemos”, argumentou, “é o estatuto de garantias que nós demos à classe trabalhadora” (36).

Havia existido um acordo tácito entre as organizações da esquerda para não mencionar o Estatuto. Essa foi uma das primeiras referências públicas àquele crucial e inibidor documento. Na seqüência de outubro o retorno dos dois jornais expropriados se tornou uma questão chave no debate da esquerda.

Havia uma razão adicional para o rápido crescimento das organizações autônomas: a autodefesa. Enquanto a maioria da burguesia se contentava em usar seu poder econômico, a extrema-direita, dirigida por “Patria y Libertad”, organizava seus próprios grupos terroristas para travar batalha nas ruas (37). Essas gangues, formadas por jovens das famílias mais ricas, lançaram uma série de ataques físicos diretos. No dia 12 de outubro os diretores dos Partidos Socialista e Comunista em Punta Arenas, no extremo sul do Chile, foram atacados. No dia 13 a linha ferroviária para Arica, 2.000 milhas ao norte, foi bloqueada; no mesmo dia indivíduos de veículos foram atacados nas grandes cidades de Valparaiso, Concepcion e Viña. O padrão de assaltos diretos continuou nos dias que se seguiram.

Nas fábricas os trabalhadores resistiram às tentativas de sabotagem dos patrões e tomaram o controle direto da produção. Na fábrica têxtil Sumar em Santiago, por exemplo, o proprietário tentou remover parte das máquinas, mas foi parado pelos trabalhadores e expulso da fábrica. Para os comitês operários não podia haver qualquer negociação – afinal de contas, o próprio governo havia feito da manutenção da produção uma prioridade absoluta. Uma jovem mulher, uma operária de 22 anos em Fabrillana, colocou a questão de uma forma particularmente clara:

“Eu penso que o camarada Allende tem sido muito suave; ele diz que é porque ele quer evitar violência, mas eu penso que devemos responder com mais força, atemorizá-los à morte. Estão tentando tirar o que nós conquistamos.” (38)

Trabalhadores de Alusa, uma fábrica de embalagem, faziam coro:

“A administração fez um chamado aos trabalhadores do escritório e eles pararam de trabalhar. Mas nós não podíamos permitir que fôssemos parte dessas manobras. Os patrões não podem nos dizer o que devemos fazer… Assim abrimos os estoques, tiramos as matérias-primas, e simplesmente continuamos produzindo – a produção não parou aqui nem por um simples momento. E não vamos parar nem agora nem nunca. Nós vemos as pessoas trabalhando com verdadeira alegria. Eu penso que nesses poucos dias nos demos conta de que o que estamos defendendo é algo muito maior do que um simples prato de feijão.” (39)

Ninguém estava imune à possibilidade de ataque. Os trabalhadores da cadeia de loja de calçado Bata, por exemplo, formaram comitês de defesa em cada um dos 113 postos de venda:

“Nós formamos comitês de autodefesa em cada loja para repelir os ataques. Nós já tivemos que nos defrontar com alguns [ataques], particularmente [em lojas] em bairros de classes alta e média. Mas nós não fechamos por um dia sequer. Nós somos contra essa greve, e quando chegar o momento decisivo não vamos ceder a ninguém. Basta!” (40)

Um trabalhador da fábrica de concreto Ready-Mix resumiu a experiência:

“Temos que agradecer aos fascistas, de qualquer modo, por nos mostrar que não se pode fazer uma revolução brincando. Quando aparece um problema nós, trabalhadores, temos que estar na linha de frente. Nós aprendemos mais nesses poucos dias do que nos dois anos anteriores”. (41)

Conclusões semelhantes foram tiradas em outros lugares, particularmente nos distritos operários onde lutas anteriores pela distribuição, moradia, entre outras coisas, haviam gestado organizações que cumpriram um papel pleno e vital nas lutas operárias de outubro. Os JAPs, comitês de distribuição formados originalmente pelo governo, transformaram-se no núcleo organizativo de um conjunto de organizações locais e comunitárias – comitês de bairro, grupos de mães, associações de sem-teto – , assumindo a tarefa de resistência nas comunidades (42). Mais importante que tudo, outubro possibilitou o contato direto dessas organizações comunitárias com os trabalhadores, tornando realidade a sua ação unitária. O cordon tornou-se, como havia prometido, um centro organizador para uma série de lutas, coordenando-as e proporcionando-lhes uma direção operária.

É quase certo que se os trabalhadores não houvessem agido imediatamente a burguesia teria sido bem sucedida em sua campanha, a economia teria sido paralisada e Allende teria sido obrigado a ceder às demandas dos patrões apresentadas no “Pliego de Chile”, a sua lista de reivindicações. Ao invés disso, os trabalhadores confiscaram o transporte e mantiveram a economia em funcionamento. Os ataques físicos de “Patria y Libertad” se defrontaram com a resistência organizada dos trabalhadores, seja dos comitês de defesa distritais ou dos comitês de vigilância organizados nas fábricas. Estes eram uma excelente ilustração das mudanças que haviam ocorrido no curso da luta, pois embora tivessem surgido como comitês para supervisionar a produção, sua função mudou durante a greve dos patrões, transformando-se em órgãos de controle operário sobre as fábricas. Também os JAPs se transformaram, passando de comitês estabelecidos para monitorar a produção a organizações combativas de base, comprando e distribuindo suprimentos, mantendo abertos lojas e supermercados, defendendo-os de assaltos da direita, e coletivizando algumas das funções domésticas nos bairros pobres, particularmente a alimentação de crianças em uma cozinha coletiva, a “olla comun”.

Não há dúvida de que na seqüência de outubro os trabalhadores não chegaram a extrair as conclusões políticas adequadas de sua experiência concreta. A generalização de idéias a partir de circunstâncias específicas não ocorre espontaneamente. Exige a intervenção consciente de socialistas revolucionários que pode proporcionar-lhe um arcabouço, um entendimento das lutas passadas da classe trabalhadora. Contudo, no Chile, as várias organizações políticas inibiram o aprendizado político. Mas a experiência de outubro havia dado à classe trabalhadora todo um novo senso de seu potencial coletivo, e isso colocava sérios problemas para Allende e para a UP.

O chamado inicial da UP para que a classe trabalhadora atuasse em defesa do governo partira da suposição de que as organizações operárias permaneciam “leais” às direções oficiais, a CUT e a própria UP (43). Mas a classe trabalhadora acabou por tomar uma ação independente para defender o governo, sem esperar instruções. Nessas circunstâncias os trabalhadores poderiam facilmente chegar à conclusão de que era necessária uma ação revolucionária para resolver a crise no Chile – e ninguém estava mais consciente disso do que o próprio Allende. Após 11 de outubro Allende hesitou e vacilou. Mas havia pouca dúvida sobre qual caminho ele tomaria. Ele havia dito freqüentemente (44): a UP jogava o seu futuro político na sua capacidade de controlar a classe trabalhadora e realizar o seu programa de mudanças em colaboração com a maioria da burguesia.

Mas Allende e seus colegas da direção política da UP pareciam não ter se dado conta de que em outubro uma fronteira histórica havia sido cruzada, e que a burguesia há muito tempo havia perdido o interesse em colaborar. Em um certo sentido, o governo Allende tornara-se um espectador na arena da luta de classes, tentando em vão se impor sobre os acontecimentos a partir do lugar privilegiado do Estado.

O outubro de 1972 ofereceu uma evidência mais excitante e dramática das possibilidades do poder dos trabalhadores. A classe trabalhadora não só superou as hesitações de sua direção ao agir independentemente, mas na realidade cotidiana da luta contra os caminhoneiros e seus apoiadores, velhas divisões foram superadas e uma nova liderança foi forjada, uma liderança que não estava paralisada por compromissos políticos ou por alguma lealdade em relação aos dirigentes sindicais. Isso refletia, em parte, a chegada a um novo estágio político de setores até então excluídos dos sindicatos e outras organizações, trabalhadores menos afetados pela disciplina partidária e sindical. Muitas das pequenas fábricas permaneciam fora do âmbito de influência da CUT porque, por exemplo, tinham menos de 25 trabalhadores. O que os cordones representavam era uma aliança entre os trabalhadores organizados e os não organizados, a população das favelas, trabalhadores agrícolas e algumas organizações estudantis.

Seu caráter político era bem menos definido. A CUT afirmava que os cordones eram simplesmente suas organizações de base com um outro nome (45). Mas as dificuldades da CUT em impor qualquer tipo de disciplina sobre os cordones, somado aos freqüentes ataques aos líderes dos cordones, mostravam que a relação CUT-cordones não era o que afirmava a direção da CUT. O MAPU, com sua ambigüidade característica, descreveu os cordones como “comitês patrióticos” (46). O Partido Socialista, como sempre tentando conciliar duas tradições políticas conflitantes, descreveu-os como “ativas escolas das massas para discutir problemas, exercer crítica construtiva, planejar soluções e coordenar iniciativas” (47).

Quanto ao MIR, este certamente desfrutava de considerável influência sobre os setores mais marginais da população através de várias organizações de caráter frentista. Mas ao mesmo tempo em que o MIR era o maior crítico das tentativas da UP de frear e manipular os cordones e outras organizações de base, e ao mesmo tempo em que usava às vezes uma retórica revolucionária, não tinha nenhuma estratégia para oferecer. No final o MIR compartilhava com todas as demais organizações de esquerda uma análise fundamentalmente débil: todas reconheciam a incapacidade da UP em dirigir o contra-ataque das massas contra os patrões, mas daí tiravam a conclusão de que a UP deveria reformar-se à luz de suas críticas – e assim ficar melhor preparado para dirigir a luta no próximo round.

Nenhum grupo da esquerda viu as posturas contraditórias da UP durante os eventos de outubro pelo que elas eram de fato: a fiel expressão de sua perspectiva política. Como resultado a esquerda permanecia desorientada diante de um novo e chocante desdobramento.

Diante de uma greve de aeroviários iniciada em 31 de outubro, e com a recusa dos caminhoneiros em por um fim à sua ação no dia posterior, Allende decidiu convidar vários generais para o seu gabinete. Ao mesmo tempo decretou um estado de emergência nacional – depositando efetivamente o governo do Chile nas mãos dos militares durante o período de emergência.

A luta para derrotar a greve dos patrões havia trazido a classe trabalhadora chilena à arena política como um ator independente, e por muitas semanas a prática cotidiana do autogoverno dos trabalhadores se desenvolveu de um modo mais e mais aparente. O significado da decisão de Allende em voltar-se para os militares, não há sombra de dúvida, era o de que a UP estava removendo pela força a iniciativa histórica da classe trabalhadora, sob a escusa de refrear a burguesia.

Posteriormente tentou-se justificar a decisão de Allende descrevendo a situação do Chile em princípios de novembro como sendo de “quase caos”, de “quebra da lei e da ordem” (48). Na verdade não era a quebra de ordem o que estava ocorrendo, mas a profunda crise de uma ordem. À medida em que novas formas de organização e atividade se desenvolviam entre os trabalhadores, cada vez mais as organizações tradicionais se tornavam incapazes de contê-las dentro dos limites de uma negociação preestabelecida entre o capital e o trabalho.

Infelizmente isso não significava que a classe trabalhadora estava se preparando para tomar o poder sob uma perspectiva revolucionária. Pois aqueles que se consideravam socialistas revolucionários encontravam-se em uma completa confusão teórica e política. Eles não tinham posição coerente acerca de nenhum dos problemas prementes. O problema da organização partidária, o papel e a natureza das forças armadas ou se seria correto romper com a UP (na realidade essa última opção não era sequer considerada nesse período). Eles não estavam portanto em condição de oferecer qualquer direção coerente. Quando a CUT, em apoio a Allende chamou a classe trabalhadora a apoiar as forças armadas na restauração da ordem, nenhuma voz organizada ergueu-se em oposição (49). Nesse momento crítico a esquerda chilena mostrou-se confusa e incapaz.

A exigência de intervenção militar veio de um congressista democrata-cristão, Rafael Moreno, mas já havia aparecido antes na lista de exigências avançada pela direita no início da greve patronal. O anúncio de Allende do novo gabinete conjunto (UP-militares) no dia 3 de novembro foi seguido de uma mensagem aos trabalhadores agradecendo-os por atuar em apoio ao governo e pedindo-lhes para retornar ao trabalho e devolver as fábricas aos seus proprietários.

Uma vez que os caminhoneiros retornaram ao trabalho assim que as forças armadas entraram no governo, era óbvio que a principal tarefa do exército era policiar o retorno dos trabalhadores às fábricas. Prats, o comandante do exército colocou a posição com um estudado tom neutro:

“Tanto quanto existe um Estado propriamente constituído, as forças armadas são obrigadas a respeitá-lo… Obviamente as forças armadas são um instrumento legítimo que está à disposição do presidente para ser usado contra qualquer um que ameace a ordem pública”. (50)

A natureza da ameaça todavia, se tornaria muito clara quando começou o estado de emergência. O rígido toque de recolher foi empregado para controlar o movimento dos trabalhadores, e os amplos poderes concedidos aos militares foram invocados para devolver os dois jornais ocupados em Talca e Concepcion aos seus proprietários originais. Os líderes dos comitês de defesa de Bata foram aprisionados por mais de um mês. E no dia 13 de novembro o ministro da economia anunciou que as 28 fábricas ocupadas pelos trabalhadores seriam devolvidas aos seus proprietários. Talvez o sistema de distribuição tenha sido o setor que mais se distanciou do controle estatal, e por essa razão foi a área submetida ao controle militar mais direto. O general da força aérea Bachelet foi encarregado do DIRINCO, agência estatal de distribuição.

O novo gabinete incluía, ao lado dos generais, três ministros da UP – dois do Partido Comunista (Millas no Ministério do Orçamento e Figueroa, dirigente da CUT, como Ministro do Trabalho) e um do MAPU (Flores no Ministério da Economia). Desde que o estado de emergência havia dado o controle real aos militares, o papel desses ministros não era o de defender supostas posições no gabinete, mas ao invés disso defender os militares junto à classe trabalhadora. Figueroa, por exemplo, discutiu vigorosamente com operários de Arica para que fosse permitido aos funcionários administrativos que haviam apoiado a greve patronal o retorno ao trabalho e o recebimento do salário integral referente ao período da greve, presumivelmente como um gesto de conciliação.

Um trabalhador de Ex-Sumar, uma das fábricas mais militantes de Santiago definiu a nova situação:

“Penso que as concessões significam que esse governo moveu-se para a direita. Ele tinha uma outra alternativa disponível: buscar apoio de massas e implantar o programa defendido inicialmente. Mas ele nunca quis realmente implementá-lo. Assim as massas foram deixadas à margem das coisas, e quando elas tentam confrontar os problemas são brutalmente reprimidas. A direita deve estar celebrando agora – você pode perceber que ela está exultante, apenas escutando às suas estações de rádio.” (51)

Um Governo com Generais

O gabinete dos ministros da UP e dos generais, contudo, não era senhor absoluto da situação. A situação depois de novembro permanecia confusa, e a confiança ganha pelos trabalhadores não era tão fácil de ser minada. Figueroa, por exemplo, chegou à conclusão de que a sua dupla autoridade – como dirigente da CUT e Ministro do Trabalho – não era tão incontestável como havia sido antes. Os trabalhadores de Arica não foram convencidos pelos seus argumentos, e no dia 24 de novembro ainda se recusavam a trabalhar com os funcionários que haviam apoiado a greve patronal. Quando Figueroa tentou persuadir os trabalhadores de Arica a acatarem a ordem, eles reocuparam a fábrica e recusaram-se a sair. No final a polícia foi mobilizada para despejá-los.

A mesma experiência repetiu-se em outros lugares, com os trabalhadores recusando-se a entregar o que haviam conquistado em outubro, afirmando que tais concessões simplesmente destruiriam tudo o que havia sido ganho, entregando a vitória à burguesia numa bandeja.

As ações espontâneas e desorganizadas de resistência dos trabalhadores, entretanto, nunca foram objeto de qualquer tentativa de coordenação ou desenvolvimento. As direções da esquerda, por exemplo, não proporcionaram nenhuma direção. O extraordinário é que nenhuma voz sequer se levantou contra a presença dos militares no gabinete. O MAPU, por exemplo, descreveu o novo gabinete como o “governo e o povo atuando como um só” (52), ao mesmo tempo em que chamava pelo aprofundamento do “poder popular”.

O Partido Comunista e o governo formavam uma só voz em uma louvação pela dedicação patriótica das forças armadas, descrevendo o novo gabinete como uma indicação de que conseguira o apoio do exército, afastando-o da burguesia:
“… a presença das forças armadas junto aos dirigentes da CUT fortalece o governo e finalmente lhe permitirá realizar a sentença de morte à greve que os trabalhadores já rejeitaram tão clamorosamente (53).”

O mais surpreendente de tudo foi o artigo de Manuel Cabieses em Punto Final, do MIR, no qual ele argumentava que:
“… as forças armadas tem um papel patriótico e democrático a cumprir em conjunto com o povo, apoiando os trabalhadores na sua luta contra a exploração… Isso é o que deve ocorrer, e é isso que a classe trabalhadora espera quando vê as forças armadas como parte do governo.” (54)

Jamais exército profissional algum ajudou qualquer trabalhador na luta contra a exploração, ou em outras palavras, a trazer abaixo o Estado burguês do qual é o pilar central. O autor das linhas citadas demonstrava no mínimo uma surpreendente ingenuidade. Mas ao mesmo tempo o MIR defendia a manutenção dos cordones.

A nota mais consistente nas declarações e análises da esquerda era a confusão e vacilação. Havia uma assombrosa falta de clareza sobre como responder à determinação da UP de desmantelar as organizações de massa surgidas em outubro. Mesmo as declarações mais militantes como os discursos de Altamirano, secretário- geral do Partido Socialista dirigiam-se para o governo, exigindo que ele agisse contra o seu próprio caráter político, isto é, que se tornasse revolucionário e não reformista. Ao invés de expor os limites do reformismo e abrir os olhos daqueles milhares de trabalhadores que ainda tinham ilusão em Allende, a retórica de Altamirano sugeria que a UP ainda poderia tornar-se revolucionária.

Theotonio dos Santos, um colaborador regular de “Chile Hoy” acrescentou: “Se quiserem conservar os ganhos adquiridos, o governo e os trabalhadores terão que aprofundá-los e estendê-los, usando os mecanismos existentes e aprofundando as raízes do poder popular (55).” Mesmo entre as vozes mais radicais nenhuma estava pronta para dizer que o desenvolvimento político do movimento operário após outubro exigia o rompimento com a direção tradicional da UP, que a UP havia se tornado um obstáculo para o desenvolvimento qualitativo da luta de classes, e que o único caminho para assegurar o que havia sido conquistado era avançar mais. Somente uma organização, e a menor de todas – a Esquerda Cristã – chegou a dar alguns passos nessa direção, recusando-se a entrar no novo gabinete e afirmando que:

“… os avanços na consciência dos trabalhadores não parecem ter atingido os seus líderes políticos. A base é muito mais rica do que a direção. A CUT e os cordones são muito mais efetivos em seus níveis do que a UP a nível político… se o poder social [do apoio da UP] fosse organizado de um modo coordenado na fábrica e a nível regional, e em órgãos de defesa, a situação avançaria e não poderia ser parada.” (56)

Contudo a própria classe trabalhadora estava exigindo uma análise da situação. No dia 13 de novembro 100 delegados dos cordones de Santiago se reuniram na fábrica Cristalerias Chile para coordenar a resistência à devolução das fábricas aos seus antigos proprietários. Essa iniciativa não encontrou eco junto à esquerda. Como o presidente do cordon de O’Higgins, um dos mais avançados cordones afirmou:

“A imprensa da esquerda simplesmente nos ignora… assim, os cordones tem que cumprir a função de ajudar-nos a conhecer melhor um ao outro, a entender as lutas de cada um e a alcançar alguma consciência do nosso poder.” (57)
Os eventos de outubro de 1972 trouxeram novos grupos de trabalhadores, muitos deles anteriormente não organizados, para o centro da luta. Também trouxe à tona formas de organização sobre as quais uma organização independente poderia ter sido constituída. A experiência dos cordones tornou-se o tema central nos debates políticos quando o ano de 1972 chegava ao seu fim. Mas ninguém extraiu as conclusões apropriadas.

Obviamente uma tomada do poder pela classe trabalhadora em novembro era impossível. Muitos dos trabalhadores estavam desmobilizados, outros estavam desmoralizados e confusos. O estado de emergência dificultava até mesmo as reuniões, e os generais estavam no poder. Mas era igualmente óbvio que a situação não havia sido definitivamente resolvida seja em favor dos capitalistas ou dos trabalhadores. Havia um clima de expectativa em todos os lugares, e ambos os lados estavam discutindo abertamente suas estratégias futuras (58).

Em tal ambiente a tarefa imediata dos socialistas revolucionários não era a de organizar a tomada do poder, mas sim um debate político e paciente e de princípios no movimento operário com aqueles que haviam dirigido as lutas na prática (59), junto com o trabalho de organização política e um envolvimento contínuo nas lutas cotidianas da classe, onde quer que ela estivesse lutando. Mas nada disso ocorreu. Houve debates intermináveis, muitos dos quais muito interessantes, mas que nunca tocavam a questão chave: o caráter político da UP.

A primeira oportunidade para todas as organizações de esquerda discutirem a experiência de outubro de 1972 veio com um debate público organizado em Santiago por uma organização católica denominada “Cristãos pelo Socialismo” (60). O representante comunista Mireya Bartra retirou-se logo após o debate ter começado, denunciando a ultra-esquerda como principal inimigo. Em resposta, Miguel Enriquez, secretário-geral do MIR, descreveu o período como “pré-revolucionário” e chamou pela criação de “germes de poder popular”. A questão principal, argumentava (corretamente) era conquistar o “controle operário”. Mas nos debates e discussões que se seguiram, nenhum representante do MIR deixou claro como isso seria conquistado ou organizado.
Preparativos para a Batalha

A UP continuava a ter um peso político considerável, mas estava longe de ser a autoridade inquestionável de antes. Seus melhores esforços não foram suficientes para extirpar as novas organizações operárias. Na verdade foram as ações do governo da UP que precipitaram o seu ressurgimento no início de 1973.

O debate após a greve dos patrões provocou uma discussão no MAPU entre a ala esquerda, que manteve o nome do partido, e uma ala pró-Allende, que adotou o nome de MAPUOC (MAPU operário e camponês) dirigido por Jaime Gazmuri. Em janeiro de 1973 o ministro da economia, Fernando Flores do MAPU, desafiou a política governamental e defendeu um congelamento de preços, controle rigoroso sobre a especulação e a garantia de uma cesta básica a um preço mínimo. Suas propostas tiveram ressonância imediata junto à população.

No dia 15 de janeiro, na favela de Lo Hermida, 300 famílias dirigiram-se a um supermercado local que havia cerrado suas portas (alegando falta de mercadorias) e exigiram a sua reabertura. Imediatamente chegaram mediadores do governo e tentaram dispersar a demonstração, mas sem sucesso. Às duas da manhã o supermercado estava aberto, e organizações locais se encarregaram de distribuir os bens de acordo com as necessidades. O mesmo ocorreu em Nueva La Habana, uma outra favela, e no cordon de Barrancas.

Foi nesse clima que Orlando Millas, o ministro encarregado do orçamento e um membro do Partido Comunista, anunciou o novo plano econômico. Este propunha o retorno de 123 fábricas aos seus antigos proprietários, incluindo as que pertenciam a um dos mais ativos oponentes do governo, a poderosa família Yarun. Mais, Millas defendia que apenas 49% das instalações industriais deveriam permanecer em mãos públicas, criando efetivamente um setor capitalista estatal para atuar em coordenação com o capital privado (61). Muito logicamente, foi anunciada simultaneamente a reabertura de discussões políticas com os democrata-cristãos. O plano representava claramente uma concessão quase completa às reivindicações da burguesia.

A classe trabalhadora reagiu com fúria. Os cordones redespertaram e responderam imediatamente. Trabalhadores do cordon de Cerrillos-Maipu bloquearam as ruas em protesto e dirigiram uma manifestação conjunta de todos os cordones da capital para o centro da cidade. O presidente do cordon, Hernan Ortega, declarou: “Não haverá compromisso, quaisquer que sejam as pressões” (62). Na Textil Bromack treze membros do Partido Comunista amassaram seus cartões de registro partidário em protesto. Mais significativo que tudo, o cordon de Vicuña Mckenna iniciou a publicação de um jornal para os cordones chamado “Tarea Urgente”. Seu primeiro número trazia uma declaração extremamente significativa:

“A todos os trabalhadores: os trabalhadores deste cordon conclamam a classe trabalhadora a se organizar em defesa da área de propriedade social [a parte nacionalizada da economia] e as fábricas que foram tomadas durante a greve dos patrões. A lei que propõe devolvê-los não reflete os sentimentos da maioria dos trabalhadores, que estão prontos a lutar para defender os seus direitos até as últimas consequências.

Portanto, em sua assembléia do dia 28 de janeiro, os membros deste cordon passaram a seguinte resolução. 1) Que nenhuma fábrica tomada durante a greve dos patrões deve ser devolvida aos seus proprietários; 2) Que nós rejeitamos unanimemente o chamado Plano Millas, que não representa as verdadeiras idéias da classe trabalhadora… nós devemos avançar sem compromissos. Nenhuma fábrica deve ser devolvida; muitas mais devem ser tomadas.” (63)

Em um tom similar os membros do cordon Panamericana Norte exigiam saber:

“Até onde as pessoas lá de cima vão continuar piorando ainda mais as coisas? Isso está começando a dar nos nervos, e nós estamos avisando que nem uma única empresa será devolvida… de agora em diante nós permaneceremos em estado de prontidão permanente para defender o nosso direito de tomar as decisões que determinam as nossas vidas.” (64)

No dia 5 de fevereiro ocorreu no Estádio Nacional uma massiva assembléia, envolvendo operários, sem-tetos, organizações de favelas e grupos comunitários, para manifestar a sua oposição ao Plano Millas. O jornal Punto Final relatou uma faixa no Estádio que alertava com um agudo senso histórico: “Um povo desarmado é um povo conquistado”. Claramente a luta de classes estava entrando em uma nova fase, e ganhando uma nova intensidade.

Mas havia pouca conexão entre o ritmo da luta de classes e as preocupações dos principais partidos. As eleições para o congresso marcadas para março estavam se aproximando, e eram consideradas tanto pela direita quanto pelos partidos da UP como um teste crucial da capacidade de sobrevivência do governo. Todas as organizações da esquerda concordavam que as eleições eram uma prioridade absoluta, inclusive o MIR, que pela primeira vez apoiou candidatos do Partido Socialista em eleições parlamentares. A UP teve o seu voto nacional aumentado em 44%. No clima que prevalecia naquele momento isso era um testemunho significativo da resistência da classe trabalhadora e uma prova de que seções da pequena burguesia também haviam sido conquistadas.

No que toca à direita, os resultados representavam um sério contratempo – um fracasso em minar o apoio eleitoral da UP. Os seus dirigentes passaram a discutir estratégias alternativas para derrubar o governo de Allende. Das duas opções apresentadas, a do golpe militar, advogada por alguns setores, foi deixada de lado em favor da estratégia dos “marechais russos”, defendida, entre outros, por Aylwin, presidente do Partido Democrata-Cristão (65). Essa era uma estratégia econômica de “terra arrasada”, objetivando devastar a economia através de ausência de investimento, retenção e acumulação de dinheiro, e a mobilização consciente de apoio internacional, criando um estado de sítio a partir de dentro e de fora.

Se havia existido uma calmaria na atividade de massas durante o período eleitoral, agora ela era retomada. No final de março de 1973 os generais deixaram o gabinete, e o Plano Millas foi abandonado. Allende anunciou a nacionalização de mais 45 empresas, mas esse anúncio foi seguido quase imediatamente, no dia 6 de abril, por um ataque virulento à esquerda revolucionária e às organizações operárias que não devolveram as fábricas após as ocupações de outubro (66). À luz desse ataque era difícil ver a incorporação de 45 fábricas ao setor estatal como outra coisa que não fosse um gesto simbólico.

Por mais que Allende condenasse aqueles que haviam “provocado” a burguesia, era ele quem estava cego para a intensidade da luta de classes. Enquanto ele insistia em se manter apegado ao seu programa original de mudança gradual, condenando as organizações operárias e camponesas por colocá-lo em risco através de suas ações precipitadas, os eventos já o haviam deixado para trás. A burguesia estava discutindo abertamente estratégias extra-parlamentares para a sua derrubada. Se Allende e a CUT ainda insistiam que o ritmo das mudanças seria determinado no parlamento, nem a burguesia nem a classe trabalhadora tinham quaisquer ilusões a esse respeito. Os trabalhadores estavam organizando-se para uma luta já em curso nas ruas, nas fábricas e no campo. Não era uma questão de se deveria ou não permitir o desenvolvimento da luta – era somente o seu resultado que estava em questão.

O número maior de votos para a UP nas eleições de março era claramente uma exigência para a ação. Mas se a UP não podia dirigi-la, então ela ocorreria de qualquer modo, fora de seu controle. A direção da UP não podia compreender isso.

A direção da esquerda certamente estava discutindo a crise, mas sua perspectiva estava limitada a exigir que a UP agisse de modo diferente (67). Uma solução muito mais radical era exigida – do tipo que já havia sido colocada na agenda histórica pela própria classe trabalhadora.

A decisão de formar um Comitê Coordenador dos cordones foi um salto qualitativo nas formas de direção da luta dos trabalhadores. Contudo não houve nenhuma divisão na UP. Por que? A corrente política dominante na liderança dos cordones era sem dúvida a esquerda do Partido Socialista, a qual apesar de ter passado a utilizar uma retórica caracteristicamente ultra-esquerdista, não estava preparada para romper com a UP ou desafiar abertamente a ala direita dirigida por Allende. Altamirano, dirigente dos socialistas geralmente considerado como da ala esquerda, via o desenvolvimento de organizações independentes na luta de classes como formas de pressão que poderiam ser utilizadas para alavancar a vitória pela direção do próprio partido. E foi essa perspectiva limitada que conquistou os socialistas de esquerda que dirigiam os cordones. Assim, o Comitê Coordenador, que poderia tão facilmente ter se tornado numa forma embrionária de poder operário, tornou-se, ao invés disso, uma facção política dentro do Partido Socialista.
A outra força política no movimento de massas era o MIR. O MIR existia há apenas oito anos, e apenas desde 1969-70 havia se voltado para organizar operários. Embora tivesse conquistado alguma base entre trabalhadores não sindicalizados, sua principal influência era entre organizações de sem-tetos e no movimento estudantil. Embora o MIR apresentasse candidatos em eleições sindicais, e de fato tivesse representantes na executiva da CUT, não possuía presença organizada nos sindicatos. Ele havia permanecido fora da UP e por vezes se posicionando de modo abertamente crítico, mas não podia oferecer uma política alternativa.
O MIR respondia pragmaticamente às realidades em mudança na luta de classes, colocando uma certa prioridade na sua própria luta pela direção política. Isso se tornou mais claro no debate em torno dos cordones.

Algumas vezes, quando várias organizações estavam envolvidas nos cordones, elas formavam comitês organizados conjuntos (Comandos Comunales). O MIR dava grande ênfase a esses comandos como órgãos dirigentes da luta, mas ao mesmo tempo denunciava os cordones e repetia as afirmações da CUT de que esses eram “organizações paralelas” à CUT. Isso era um absurdo, é claro. Os cordones eram organizações independentes nas quais os trabalhadores tinham um reconhecido papel dirigente. Paradoxalmente, apesar de seu compromisso com a “hegemonia da classe operária”, o MIR parecia preocupado com o papel dirigente cumprido por essas organizações operárias, nas quais eles não ocupavam posições de liderança. Os seus chamados para converter os cordones em amplas organizações que representassem igualmente sem-tetos, organizações de distribuição, estudantes e outros setores mostravam ser incorreta a sua reivindicação do marxismo. Na prática a sua denúncia dos cordones negava especificamente o papel central da classe trabalhadora na luta pelo poder estatal.

De qualquer modo, as chamadas retumbantes do MIR eram pouco mais do que slogans, uma vez que eles não levavam a qualquer conclusão organizativa mais concreta. Enquanto isso, a luta de classes não esperava. Ela continuou com crescente intensidade após as eleições parlamentares, à medida em que a direita lançava seus assaltos e o governo não oferecia resposta. O movimento operário, entretanto, tinha a sua própria resposta a oferecer.

O Desafio dos Mineiros

Os trabalhadores das minas de cobre jogaram um papel central na história do movimento operário chileno. Foi, portanto, uma questão de considerável significado a greve iniciada no dia 19 de abril pelos mineiros da maior mina de cobre do mundo em El Teniente.

A greve começou silenciosamente. O isolamento físico dos mineiros em uma região montanhosa do país significava que o impacto da greve sobre o resto do movimento não seria imediato. E a esquerda não estava particularmente ansiosa por elevar o nível de debate público acerca da greve. Pois a questão que levara à greve era vergonhosa. No início de 1973 a UP garantira um aumento salarial geral para compensar a inflação. Os mineiros, contudo, tiveram um acordo separado, pelo qual era garantido anualmente um aumento salarial, ao lado de outras melhorias. O governo recusou-se a pagar esses aumentos. Os mineiros entraram em greve, acusando o governo de não cumprir o acordo firmado conjuntamente, o que, sem dúvida alguma, era verdadeiro.

A greve prosseguiu durante os meses de maio e junho, embora alguns mineiros tivessem retornado ao trabalho sob a intensa pressão exercida por todas as organizações de esquerda, inclusive o MIR, que argumentavam que tudo havia sido provocado pela burguesia e pelo imperialismo (68).

As questões e as acusações eram bastante familiares. Os mineiros eram denunciados por seu “economicismo”, pela defesa de seus estreitos interesses setoriais acima dos interesses da classe como um todo. Com efeito a esquerda estava lhes pedindo para sacrificarem as suas conquistas em nome do “bem geral”. A realidade, naturalmente, era que os únicos beneficiários de tais concessões seriam os membros da classe dominante – e o governo era perfeitamente consciente disso. Os mineiros continuavam a produzir, mas o preço do cobre no mercado mundial estava caindo. Deveriam os mineiros aceitar as consequências desse declínio ou deveriam conduzir-se como qualquer outro grupo de trabalhadores organizados defendendo suas condições de vida?

De qualquer modo o argumento de que os mineiros estavam sendo chamados ao sacrifício em nome do “bem comum”, e de que o seu desprendimento significaria socialismo, não fazia nenhum sentido. Os ganhos do primeiro ano do governo da UP já haviam sido devorados pela inflação e pelos aumentos de preços. Assim, o poder de compra dos salários em 1973 estava menor do que em 1971. A burguesia, de fato, estava beneficiando-se com a situação, ou no mínimo, estava protegida dos piores efeitos precisamente por causa da política da UP em pedir aos trabalhadores para carregarem o peso da crise.

O governo chileno não era um governo defensor dos trabalhadores. Ele buscava negociar o preço do trabalho com o capital, usar o Estado como instrumento de mediação – a partir de garantias pré-estabelecidas à classe capitalista. Em tal situação o papel de uma organização operária deveria ser muito claro: a defesa dos interesses e das condições de vida dos trabalhadores. Entretanto, nenhuma organização assumia esse ponto de vista. A firme orientação de toda a esquerda na luta interna da UP significava que todos se voltavam para atacar os mineiros por representarem uma ameaça ao governo (69). Tivessem essas organizações uma perspectiva coerente com o desenvolvimento da luta de classes, e a resposta teria sido outra. Mas ao invés disso preferiram chamar o líder dos mineiros Medina de “nazista” e os próprios mineiros como uma “aristocracia operária”. Quando, em junho, os mineiros marcharam para Santiago exigindo a abertura de negociações com o governo, eles foram parados e atacados pelo Grupo Móvel, a polícia anti-motim que Allende se comprometera a desmantelar tão logo havia tomado posse em 1970.

A greve dos mineiros revelou as debilidades não só da esquerda chilena, mas também – e ainda mais seriamente – dos próprios cordones. Os setores tradicionalmente bem organizados dos trabalhadores estavam ausentes da rede nacional de cordones. Seus sindicatos eram o núcleo da UP, e a sua disciplina o fruto de anos de luta. Uma vez que seus líderes políticos haviam condenado os cordones, muitos desses setores foram persuadidos a não participarem deles. E a CUT trabalhou duro para impedir qualquer contato direto entre esses trabalhadores – majoritariamente do setor público da economia – e os setores organizados nos cordones.

O isolamento geográfico e político dos mineiros levou a que muitos trabalhadores tomassem conhecimento da greve a partir dos meios de comunicação da direita. As organizações da direita foram rápidas em explorar as contradições na posição da UP e começaram a organizar coletas em apoio aos mineiros (um evento tão raro quanto bizarro). Isso tornou a situação ainda mais confusa, mas forneceu aos líderes da CUT e aos partidos da UP a “prova” de que a greve dos mineiros era um complô da direita para minar o governo Allende. Isso era um insulto ao setor mais combativo da classe trabalhadora chilena e um exemplo do oportunismo mais vil tanto por parte da direita quanto do governo. Se a direita usou a greve, isso ocorreu precisamente porque toda a esquerda havia fracassado em entender ou responder ao justo descontentamento dos mineiros de El Teniente.

Em todas as partes os eventos ocorriam rapidamente. No final de abril uma manifestação da CUT levou milhares às ruas da capital. Quando os manifestantes passaram diante da sede do Partido Democrata-Cristão, um tiro ecoou, e um trabalhador foi morto. Uma série de pequenas lutas locais continuaram. No início de maio os 50 operários de uma serraria em Entre Lagos ocuparam o local de trabalho quando o seu patrão anunciou o seu fechamento. Quando veio a CUT, propondo a co-gestão junto com o velho patrão, os trabalhadores recusaram:

“Nós pensamos que com o apoio de toda a população de Entre Lagos nós podemos derrotar essas pessoas que pensam que podem usar o dinheiro do governo para construir fábricas para os patrões e simplesmente deixar os trabalhadores de lado (70)”.
Quando os representantes do governo tentaram alcançar os mesmos fins através de subterfúgios, foram alertados para não subestimarem os trabalhadores. Uma experiência similar repetiu-se na fábrica JEMO e na INAPIS Pistons, ambas em Santiago. Quando os trabalhadores tomaram a fábrica de componentes eletrônicos SALFA, em Arica, o governo cortou os subsídios estatais que a fábrica recebia quando era propriedade privada.

Talvez a mais dramática luta tenha sido a que ocorreu na cidade litorânea de Constitución nos dias 10 e 11 de maio, quando a cidade viveu dois dias de incontestável controle das organizações de massa. O confronto começou no final de 1972, com o estabelecimento de sem-tetos na cidade. Em janeiro de 1973, Constitución estava vivendo os mesmos conflitos das demais cidades chilenas acerca do fornecimento, a devolução das fábricas e falta de moradia adequada. Sua resposta, porém, foi atípica. No dia 21 de fevereiro o povo da cidade se reuniu em uma “Assembléia de massas do povo”, para identificar os problemas que os sem-tetos, camponeses e trabalhadores compartilhavam. Dois meses depois, no dia 10 de abril, a Assembléia reuniu-se novamente, e decidiu exigir a renúncia do governante regional, que havia resistido a todas as suas tentativas de encontrar soluções para os problemas e ignorou todas as suas reivindicações (71).

O que se seguiu, entretanto, foi assombroso. Toda a população da cidade, em torno de 25 mil, simplesmente assumiu o controle. Barricadas foram erguidas nas principais rodovias. Comitês de saúde e comitês de vigilância foram estabelecidos para organizar o atendimento médico e manter a ordem. A reivindicação era simples: que o governante fosse demitido e substituído pelo corpo dirigente eleito da comissão conjunta de trabalhadores estabelecida na primeira assembléia. Durante os dois dias da ocupação a assembléia de massas permaneceu em sessão permanente. As lojas foram mantidas abertas e todos os bares fechados. No final do dia 11 o governo cedeu à principal reivindicação.

A campanha em Constitucion tinha um objetivo limitado, relativamente inócuo em si. O que foi significativo foi a forma radical tomada pelo movimento e a confiança e a organização que ela indicava.

Essa luta ocorreu numa cidade provinciana sem nenhuma tradição. Isso mostra o nível de consciência dos trabalhadores chilenos naquele período. Demonstra, além disso, que a própria luta havia colocado os trabalhadores na direção de um amplo movimento de massas. As divisões setoriais e de seita existentes no topo – na UP e na CUT – foram sendo crescentemente superados ao nível da base, na medida em que os trabalhadores organizavam-se conjuntamente para confrontar problemas específicos.

Esses problemas, além do mais, eram cada vez mais questões relativas ao controle. Como afirmou o líder de um cordon, eram “tarefas das massas, tarefas de governo” (72), e elas exigiam novas formas de organização. A CUT tinha dificuldades crescentes para manter a sua autoridade na base, e embora a UP fosse ainda reconhecida, em um sentido geral, como a direção da classe, suas decisões táticas e suas orientações eram cada vez mais ignoradas.

Na medida em que o ato final se aproximava, o drama chileno parecia ter alcançado uma espécie de platô. Na base havia uma intensa atividade, com lutas ocorrendo constantemente, algumas delas longas e duras, muitas delas envolvendo diferentes setores dos trabalhadores. Porém não havia ainda um foco nacional para essas lutas. Enquanto várias organizações locais e de base faziam tentativas para unificar as ações, a direita tinha já uma perspectiva nacional – a derrubada e a substituição de Allende – e agia abertamente com base nela. As organizações de esquerda estavam aparentemente envolvidas em intermináveis debates sobre a unificação, mas seu foco era sempre a própria UP e não as iniciativas independentes dos trabalhadores.

Allende, por sua vez, parecia estar dirigindo uma coalizão que já não funcionava como direção política em nenhum sentido – e parecia ignorar essa situação, embarcando em sucessivas discussões com os partidos da direita. Em todas as partes a discussão voltava-se para impedir a crise política. Mas ninguém parecia estar seguro sobre a forma que a crise iria tomar.

O abismo entre a UP e as massas foi claramente ilustrado no começo de junho, quando a Unidade Popular reuniu-se pela primeira vez como uma única organização e realizou o seu I Congresso no Teatro Municipal de Santiago. Nenhum dos líderes partidários se fez presente, e as discussões e resoluções tomadas demonstravam um elevadíssimo nível de abstração (73). As declarações de unidade, feitas no encerramento, refletiam apenas a decisão dos delegados do Partido Socialista em não arriscar uma divisão. A unidade da UP, em outras palavras, era negativa e falsa, uma confissão de impotência diante da tempestade que se anunciava lá fora.

O congresso da UP foi superado pelos acontecimentos. Muito mais importantes foram os congressos de trabalhadores em cada ramo industrial que tiveram início no final de maio para discutir as possibilidades de se formarem organizações conjuntas de trabalhadores de vários ramos. Os primeiros três congressos cobriram os ramos têxtil, de pesca e madeira.

No dia 19 de maio, em Maipu, camponeses que vinham travando uma longa luta pela terra que pertencia à família de Perez Zujovic, político de direita que havia sido assassinado, chamaram os trabalhadores de Cerrilos em seu apoio. A polícia foi enviada para dispersar a manifestação conjunta. Uma luta similar ocorreu em Ñuble no final do mês, desta feita com maiores concessões do governo.

No dia 21 de maio Allende fez um discurso muito estranho, no qual ele expressava a sua aprovação dos comandos comunales. Imediatamente o Partido Comunista deu permissão aos seus membros participarem dos comandos. O que era estranho no discurso é que anteriormente Allende havia atacado duramente essas organizações, colocando-as na mesma categoria dos cordones. Agora parecia querer criar uma distinção entre ambos, e ganhar alguma influência para a UP nas novas organizações de massas. O que tornou a questão duplamente curiosa é que o MIR concordou com Allende, e insistiu para que uma proposta dos socialistas de realizar um Congresso dos Comitês coordenadores dos cordones (74) fosse deixada de lado, até que uma reunião nacional dos comandos pudesse ser convocada.

O congresso proposto nunca chegou a ocorrer. Contudo, foi o ponto mais próximo alcançado pela esquerda para a formação de uma organização independente de revolucionários, uma direção política alternativa à UP. Talvez o discurso de Allende tenha reacendido a discussão de que a esquerda poderia ganhar a direção da UP; talvez as divergências internas simplesmente não poderiam ser resolvidas. Quaisquer que tenham sido as razões, o passo não foi dado. Assim, quando pela segunda vez os acontecimentos colocaram os trabalhadores diante da responsabilidade de defender a classe contra a burguesia, não havia nenhuma organização que pudesse centralizar ou direcionar a sua luta rumo a uma transformação revolucionária.

O poder dual e o início do fim

No dia 29 de junho de 1973, o regimento de tanques de Santiago, sob o comando do coronel Roberto Souper, tomou as ruas da capital e anunciou a tomada do poder. As notícias chegaram na fábrica EASTON, parte do cordon de Vicuña Mckenna, às 9:00 da manhã.

“Às 9:15 nós soamos a sirene da fábrica e convocamos uma assembléia geral. Concordamos que todos nós deveríamos permanecer na fábrica e enviar algumas ‘tropas de choque’ para contatar outras fábricas e encontrar transporte.” (75)
Um ‘comando conjunto’ foi formado no cordon Cerrillos, e quatro comunicados foram publicados durante o dia em intervalos de duas horas. O primeiro comunicado estabelecia as tarefas imediatas:
“Instruções: Número 1
1) Tomar todas as fábricas.
2) Organizar brigadas de 11 camaradas, com um líder; os líderes de cada brigada, junto com organizadores sindicais, assumirão a organização da fábrica.
3) Centralizar na fábrica todos os veículos e materiais que possam ser usados para a defesa da fábrica, da classe operária e do governo.
4) De hora em hora cada fábrica deve soar a sua sirene para indicar que tudo está bem. Se for necessário ajuda, a sirene deve ser tocada continuamente.
5) Manter permanentemente sintonizados na rádio Corporación.
6) Colocar um guarda no ponto mais visível da fábrica.
7) Manter comunicação constante com as fábricas próximas e apontar camaradas para atuarem como correios.
8) Dizer onde o comando estará localizado e onde os camaradas dirigentes se encontrarão, caso o acesso for impossível.
9) Organizar assembléias e manter os trabalhadores informados.” (76)

A experiência repetiu-se por todo o país, com novos cordones e comandos sendo formados nas poucas horas do que foi chamado de “a tentativa de golpe de Souper”. Souper era, na realidade, um dissidente, abertamente associado com Pátria y Libertad, e visto com considerável suspeita pelo alto comando das forças armadas (esta não era a sua primeira tentativa de golpe).

A tentativa de Souper não era mais do que Prieto chama de uma “peça de propaganda armada” (77). Nisto ele teve sucesso. A liderança dos militares se opôs apenas quanto ao momento de realizar o golpe: círculos de direita, envolvendo lideranças militares, já vinham discutindo há algum tempo a realização de um golpe militar. A resposta da classe trabalhadora ao golpe de Souper, por sua vez, fez pender definitivamente a balança em favor de uma ação de força em detrimento de uma solução política. Nas forças armadas a reação das massas desencadeou uma discussão urgente sobre a necessidade de intervenção militar.

Num certo sentido, o próprio Allende foi responsável pela autoconfiança e autoestima dos militares. Não havia ele repetidamente chamado os militares para resolver conflitos sociais? Não havia ele concordado com massivos aumentos salariais para os militares, justamente quando se pedia para a classe trabalhadora suportar sacrifícios? (78)

Mais uma vez, no dia 29 de junho, Allende iria demonstrar a sua fé e a sua dependência para com as forças armadas. Enquanto os cordones estavam organizando a resistência da classe trabalhadora, o seu presidente estava em discussão com o comandante-em-chefe das forças armadas. A UP, em uma palavra, estava indefesa e impotente diante da mobilização da burguesia.

Nos dias que se seguiram, o MIR, o MAPU e o Partido Socialista (79) lançaram chamados clamorosos aos trabalhadores para prepararem a defesa do governo com armas nas mãos. Mesmo o Partido Comunista encorajou os operários a usarem seus tornos para fabricarem armas, e os discursos de Allende estavam cheios de ameaças veladas. A famosa foto de Allende praticando tiro, que tanto inflamou a direita, data desse período.

Mas nem isso nem os chamados pela construção do poder popular significavam qualquer coisa, tanto quanto estivessem associados com a velha política e com as declarações de lealdade à direção da UP. Nem mesmo nesse estágio, quando a classe operária estava melhor organizada e mais confiante, quando organizações conjuntas de trabalhadores existiam por todo o país, e quando os melhores revolucionários estavam em uma inequívoca posição de liderança, a esquerda tomou o caminho da luta pelo poder. Pois isso os levaria ao confronto com a própria UP. Assim, como no caso do comunicado de Cerrillos, chamados pelo mais alto nível de ação independente operária continham também declarações de lealdade a Allende.

Para alguns analistas, essa lealdade era uma força, um fator importante para vencer a batalha ideológica dentro das forças armadas. Para os reformistas era desse modo que a batalha seria ganha – produzindo um novo e progressista comando das forças militares (80). Na verdade uma divisão no exército só poderia ter ocorrido se os soldados da base tivessem agido em solidariedade aos seus irmãos e irmãs de classe num desafio ao poder. Os generais entenderam isso. Allende não. Os generais sabiam que o exército profissional existe como a última linha de defesa do Estado burguês. Allende não. A ilusão de que o exército podia atuar na luta de classes em defesa dos trabalhadores não era algo confinado aos reformistas: o jornal Punto Final do MIR, em sua edição de 30 de julho, chamava pela formação de uma “ditadura conjunta do povo e das forças armadas”! (81)

Contudo, uma mudança qualitativa estava ocorrendo nas ruas e nas fábricas. O ritmo dos acontecimentos estava se acelerando, e a cada dia emergiam novos órgãos da ordem proletária. Um novo cordon, de Santiago centro, agrupou funcionários públicos e moradores de cortiços. Em Barrancas uma série de ocupações de fábrica traduziu-se imediatamente em um novo cordon, quando os comitês de cada fábrica formaram um comitê coordenador conjunto. Quando os comerciantes tentaram fechar suas lojas, elas foram reabertas pela população local, que passou a organizar a distribuição direta de bens. Quando os proprietários de frotas de caminhão foram novamente à greve, aparentemente para protestar contra um plano de sistema de transporte estatal, os trabalhadores requisitaram diretamente os veículos. Hospitais foram tomados por comitês de trabalhadores.

Num certo sentido a resposta à tentativa de golpe de Souper foi uma reedição de outubro de 1972. Mas existiam diferenças importantes. Primeiro, a classe operária tinha agora a experiência de muitos meses de autoorganização sobre a qual baseava sua resposta. Segundo, o fator militar era agora central. Terceiro, o governo Allende podia oferecer muito menos do que no ano anterior. Em uma palavra, as apostas eram maiores e o tempo mais curto. O potencial também era muito maior.

Na fábrica de vestuário El As um grupo de trabalhadoras sem nenhuma história política anterior ocupou a fábrica. Elas se surpreenderam quando um dirigente sindical local, que era um democrata-cristão, aderiu à luta e ficaram encantadas quando foram convidadas a aderir ao cordon O’Higgins. Como disse uma delas:

“A solução da CUT é conversar com os patrões e alcançar um acordo com ele, devolvendo-lhes as fábricas… Eu nunca fui de me meter em política, nós nunca conversamos muito sobre o processo [político], mas nós estamos todas envolvidas agora e sabemos o que isto significa, e tudo que podemos dizer é que isso é uma traição à classe trabalhadora. Talvez esta seja uma fábrica pequena… mas no fundo o que é importante aqui é o político e não o econômico. Se nós, os trabalhadores, queremos o poder, nós nunca o conseguiremos devolvendo as fábricas, por menores que elas possam ser.” (82)

As condições de uma crise revolucionária estavam presentes… As funções de produção, distribuição, defesa dos trabalhadores e serviços sociais estavam nas mãos das organizações operárias. A burguesia estava mobilizando-se para o confronto, enquanto o Estado existente era impotente para agir decisivamente numa situação em que já não podia governar.

Três dias após o golpe de Souper, Allende declarou novamente um estado de emergência. A sua declaração não era nem mais nem menos do que um convite ao exército para que resolvesse a situação do modo que achasse melhor. O novo gabinete anunciado em 4 de julho não incluía representante militar. A afirmação de Allende de que isso era para “não comprometer a neutralidade das forças armadas” não soou muito convincente. Pelo contrário, parecia que lhes dava a máxima liberdade de movimento, isentando-os de qualquer tipo de controle político.

O primeiro ato dos militares, como antes, foi o de voltar-se contra os jornais e estações de TV simpáticos aos trabalhadores. Um número de Punto Final foi recolhido dos postos de venda e o canal de TV estatal foi censurado. Já ao canal 13, dirigido pelo demagogo de direita padre Hasbun permitia-se continuar, sem interrupção, as suas chamadas por um golpe militar (83). Um toque de recolher foi imposto, impedindo efetivamente que os trabalhadores coordenassem suas atividades durante a noite. E, fora de Santiago, relatos sugeriam que os militares já estavam estabelecendo controle.

A força dos militares foi terrivelmente reforçada quando apoiadores da UP na marinha e na força aérea denunciaram publicamente os preparativos de golpe que já estavam em andamento em algumas instalações militares chaves. Os seus apelos a Allende para que agisse foram respondidos com o agradecimento presidencial pela sua lealdade, mais a afirmação de que, sob o estado de emergência, ele teria que deixar o alto comando resolver o problema – e ele estava seguro de que isso seria feito. Os militares resolveram, a seu próprio modo. Eles julgaram os homens em corte marcial, os condenaram a longo tempo de prisão e os submeteram a torturas.

O ato final

O ato final do drama chileno ocorreu em julho e agosto de 1973. O golpe militar de setembro que derrubou o governo da UP e afogou o Chile em um banho de sangue foi o golpe de misericórdia.

No verão as questões secundárias já estavam resolvidas. Agora faltava resolver a batalha pelo poder. As fábricas estavam novamente ocupadas – muitas não haviam sido devolvidas desde outubro de 1972, os centros de fornecimento estavam sob controle direto dos trabalhadores; as organizações de defesa haviam sido reformadas. A classe trabalhadora estava preparada para essa fase final da luta de classes – mas os seus dirigentes não.

Allende, após a sua hesitação e o seu inesperado apoio aos comandos nas declarações anteriores, parecia mais decidido e resoluto no dia 25 de julho. Novamente ele voltou o seu ataque contra os cordones e a esquerda em geral, por levarem o país à beira da guerra civil. O caráter político de seu discurso torna-se mais claro e revela-se mais desprezível pelo contexto no qual foi feito. A imprensa de direita estava agora defendendo abertamente a derrubada militar da UP; a segunda greve dos patrões, dirigida novamente pelos caminhoneiros, estava para ser iniciada no dia seguinte. O Congresso estava virtualmente paralisado, bloqueado por uma pilha de propostas de impeachment a Allende e a sua remoção da presidência. A economia estava paralisada: as exportações de cobre caíram em valor; a burguesia cessara de investir; peças e matérias-primas eram cada vez mais difíceis de serem conseguidas; aumentava a escassez de produtos. A burguesia estava usando todas as suas armas econômicas. E o assassinato de capitão Araya, assessor pessoal de Allende, foi um claro aviso de que eles estavam preparados também para usar armas de verdade.

Quando a Lei de Controle de Armas foi finalmente aprovada no início de agosto, seu propósito não foi o de proporcionar um instrumento legal contra aqueles que estavam preparando um golpe, ou contra os bandos de ultra-direita. Foi, ao contrário, o meio que permitiu ao exército e à polícia, sob o estado de emergência de Allende, realizar ataques preventivos contra as organizações de massa.

Essa operação foi conduzida de um modo coordenado, sistemático e a nível nacional. No dia 7 de agosto houve relatos de que Punta Arenas, cidade do extremo sul do Chile, estava sob ocupação militar, e que um trabalhador havia sido morto. Em Cautim e Temuco as propriedades das organizações camponesas foram requisitadas, e muitos de seus líderes presos e torturados. O jornal Chile Hoy chegou a mostrar fotografias das marcas de tortura no seu número de 30 de agosto. Em cada caso as operações eram possíveis porque a Lei de Controle de Armas permitia a imposição da lei marcial, embora isso exigisse explícita permissão presidencial. A qual era sempre concedida.

Na cidade de San Antonio o estado de emergência pôs em evidência um homem que se tornaria infame como dirigente da segurança estatal após o golpe – Manuel Contreras. Mas em San Antonio ele encontrou a resistência determinada de ações de massa coordenadas. No Teatro del Pueblo em Osorno as organizações locais se reuniram sob a direção do cordon local e publicaram um programa pelo imediato estabelecimento do controle sobre a cidade. Esse programa incluía mais expropriações de fábricas, apoio às lutas dos índios Mapuche pela terra, um compromisso em reorganizar o serviço de saúde sob controle dos trabalhadores, e um convite aos soldados rasos a desertarem e se juntarem aos trabalhadores. Aqui a questão estava posta de modo explícito: era um desafio ao Estado burguês.

No dia 3 de agosto Allende anunciou um novo gabinete formado por ministros da UP e por generais. Isso era totalmente coerente com as suas ações e as declarações feitas poucos dias antes. Allende havia se rendido completamente à idéia de que a questão chave era defender e sustentar o Estado burguês. Nisto ele e a burguesia estavam de acordo.

Quem era então o inimigo? O líder do Partido Comunista, Luis Corvalan, em um discurso tragicamente famoso feito em Santiago no dia 8 de agosto (84), deixou a questão clara e sem nenhuma sombra de dúvida. Ele louvou o firme patriotismo e lealdade das forças armadas, e no mesmo discurso denunciou a ultra-esquerda, à qual ele equiparava às gangues fascistas de Patria y Libertad, como responsáveis pela violência. Nos três dias anteriores o exército havia ocupado algumas das fábricas no cordon Cerrillos, e a marinha havia entrado à força no Hospital Van Buren em Val Paraíso. Quando Corvalan e Allende atacavam a ultra-esquerda, eles estavam dirigindo o seu veneno à única força visível que desafiava ativamente o Estado – a própria classe trabalhadora. Existem poucas ocasiões em que as organizações de esquerda defrontam-se com possibilidades tão dramáticas e criativas quanto as que foram oferecidas pelas organizações operárias – os cordones e comandos – no Chile em julho e agosto de 1973. O longo e paciente trabalho preparativo de qualquer organização revolucionária está dirigido justamente para um tal momento, mas uma vez que esse ponto é alcançado ele permite pouco tempo para vacilação ou debate. É um momento para ser agarrado – ou é perdido. A esquerda chilena não esteve à altura da tarefa.

O problema não era apenas uma questão de armas – muito embora, nesse momento crítico, uma classe trabalhadora desarmada não pudesse atrair os soldados, faze-los romper com a disciplina do exército, nem resistir a um ataque militar. É claro que os trabalhadores tinham que ser armados, mas a questão central era outra. Armas desequilibram a balança somente quando elas são usadas na busca de um claro objetivo político, a conquista do poder e a derrocada do Estado. E quando elas são usadas por um movimento coordenado dirigido por revolucionários que compreendem a natureza do momento.

Isso não quer dizer que tudo o que é necessário é um grupo de revolucionários com determinação à espera nos bastidores, prontos e armados para o momento certo. Uma revolução exige o desenvolvimento de uma organização que possa dirigir a classe trabalhadora, uma organização implantada nas suas lutas vivas e construída com base em uma compreensão da luta de classes e de seu possível resultado.

Na ausência de tal direção política uma revolução social vitoriosa é impossível. De fato, chamadas para a luta armada como as que foram feitas pelo MIR ou por Altamirano, secretário do Partido Socialista, nos primeiros dias de agosto de 1973 eram irresponsáveis ao extremo. Naquele estágio até mesmo o Partido Comunista – em uma cabal demonstração de oportunismo – estava conclamando os trabalhadores a se armarem. O chamado de Altamirano aos soldados para que depusessem suas armas transferia a responsabilidade de agarrar o momento revolucionário ao soldado individual – quando essa responsabilidade pertencia claramente às organizações revolucionárias, ou às que se descreviam como tais.

Pelo final de agosto um clima de desmoralização havia se espalhado pela classe trabalhadora chilena. As comemorações, no dia 4 de setembro, da vitória eleitoral de Allende em 1970 foram apáticas e deprimentes, muito embora meio milhão de pessoas tivessem ido às ruas. O resultado do golpe militar uma semana depois foi um desfecho inevitável.

Entretanto, as coisas poderiam ter ocorrido de forma diferente. Os trabalhadores estavam prontos para lutar, e estavam preparados para as consequências. Os organismos sobre os quais erigir um novo poder já existiam. Mas no fim, todas as organizações da esquerda chilena dirigiram-se à UP; interpretavam o elevado nível de luta das massas como uma forma de pressão sobre a UP, e assim não proporcionavam uma direção revolucionária alternativa (85). Essa incapacidade de proporcionar uma direção equivaleu a abandonar os trabalhadores aos ataques selvagens da burguesia, e cada organização da esquerda chilena deve compartilhar essa responsabilidade.

Partindo desse contexto, o tão citado discurso final de Allende transmitido por rádio pouco antes de seu assassinato não era apenas incorreto. Sua indignação moral, sua declaração de que a história condenaria os generais era uma renúncia imperdoável de sua própria responsabilidade e uma mentira dirigida à posteridade. Os eventos de 1973 no Chile proporcionaram um vislumbre do poder dos trabalhadores, da capacidade dos trabalhadores em confrontar os desafios da luta de classes. Tragicamente, também ficou demonstrado que em um tal momento o inimigo da revolução é o reformismo, a política daqueles que estão mais comprometidos com a defesa do Estado burguês do que com a transformação do mundo.

Após a tragédia no Chile a sua história real tem sido reescrita para proteger os reformistas em todo o mundo das verdadeiras consequências da política de conciliação (86). O golpe que pôs um fim às lutas de 1972-73 no Chile foi uma derrota terrível e selvagem para a classe trabalhadora, mas ela não foi o resultado de uma conspiração mundial e nem era inevitável. Havia uma outra possibilidade na agenda histórica que nós não podemos permitir que seja enterrada. A importância de Chile1972-73 é o seu legado para as lutas futuras.

O Golpe

Na manhã do dia 11 de setembro de 1973 uma operação militar combinada teve início, derrubando o governo de Salvador Allende. O golpe foi dirigido por Augusto Pinochet, que fora membro do gabinete militar de Allende em agosto. Pelas nove da manhã os tanques cercaram o palácio presidencial. Este era o último ato do golpe, uma vez que as mais combativas organizações de operários, camponeses, estudantes e favelados já haviam sido desarmadas e destruídas durante o estado de emergência em vigor nas semanas anteriores.

Na realidade, o golpe não era uma surpresa para ninguém. O Partido Comunista, por exemplo, lançara um pôster um ou dois dias antes do golpe, com a frase: “Não à violência da esquerda e da direita”. Quando os militares assumiram o controle do poder os militantes das várias organizações, diante do assalto militar, esperavam em vão por instruções de seus dirigentes. Afora resistências esporádicas, isoladas, não houve uma resistência organizada ao golpe. A luta já estava perdida, o movimento levado à derrota por seus dirigentes reformistas.

No decorrer do dia centenas de pessoas foram cercadas e levadas à instalações militares, a prisões e campos de concentração improvisados. Milhares foram levados ao Estádio Nacional de Futebol e ali foram mantidos até serem removidos para serem torturados ou assassinados. Alguns, como Victor Jara, o mais conhecido cantor folclórico do Chile, sequer tiveram que esperar tanto. Suas mãos foram quebradas quando ele tentava cantar uma canção de resistência, e em seguida foi morto.

O golpe foi conduzido com uma selvageria extraordinária: milhares foram violentados, sujeitos a tortura desumana, maltratados, assassinados. Nos doze dias seguintes trinta mil pessoas foram mortas. Eram os melhores e mais corajosos líderes de sua classe, sistematicamente assassinados com a sofisticada ajuda de serviços de inteligência estrangeiros. E eles não eram apenas mortos – eles eram estraçalhados para alertar e aterrorizar a futura geração. Os demais eram tratados arbitrariamente para aterrorizar a população e dar um aviso claro de que o novo regime não daria quartel. Esse era o significado dos corpos mutilados que flutuavam a cada manhã no Rio Mapocho em Santiago.

Para aqueles, como o próprio Allende, que sempre insistiam na profundamente sólida tradição democrática do Chile e no “profissionalismo” de suas forças armadas, a brutalidade e o sadismo do golpe eram inexplicáveis. Reformistas do mundo todo que tentaram explicar essa aparente aberração obscureceram o caráter errôneo de suas análises sobre o exército e tentaram proteger a Unidade Popular dos olhos inquiridores do futuro. Eles tentaram colocar a culpa em uma conspiração da CIA (87).

A realidade foi outra. O golpe ocorreu porque o crescente nível da luta de classes no Chile chegou a ameaçar a existência da sociedade burguesa. Nesse momento decisivo da luta de classes a classe dominante não oferece nenhuma trégua, quaisquer que sejam as chamadas tradições. As “democracias” ocidentais, afinal de contas, são ansiosas para defender as tradições da “democracia” até o fim, se necessário com armas de destruição em massa. Assim foi no Chile.

A violência dos militares chilenos não se baseava em nenhum sentimento de vingança, mas envolveu a extirpação sistemática da memória da classe trabalhadora de seus melhores e mais corajosos organizadores e dirigentes. Uma vez feito isso eles podiam levar o Chile à arena experimental de uma economia monetarista sem os obstáculos de uma classe trabalhadora organizada. Sua lógica era a lógica do capitalismo com todas as consequências que já conhecemos: um padrão de vida mínimo para os trabalhadores, desemprego permanente e estrutural, ausência de serviços sociais, clima de terror permanente, escolas onde apenas se poderia ensinar resignação e patriotismo(88).

Contudo, os reformistas impediram a organização pela conquista do poder pelos trabalhadores, porque segundo eles isso traria consequências danosas. Em sua ansiedade de salvar os trabalhadores de si próprios, a Unidade Popular deixou a classe trabalhadora desarmada e indefesa diante do golpe. Hoje as lutas dos trabalhadores chilenos começaram de novo. Seria uma terrível ironia da história se não lhes fosse permitido aprender as lições de sua própria história.

NOTAS

(*) Traduzido de Chile 1972-73: The Workers united, Mike Gonzales, in Revolutionary Rehearsals, Colin Barker (ed., Bookmarks (Londres). Mike Gonzales é professor de espanhol na Universidade de Glasgow e membro do SWP britânico. É autor de Nicaragua: Revolution under siege e inúmeros ensaios. Tradução de Rui Polly.

1. As ferrovias transportavam um terço do frete nacional, e os restantes dois terços eram transportados pelas rodovias.

2. Na verdade ele era membro de uma pequena organização terrorista de extrema-direita chamada Patria y Libertad que nutria fortes simpatias pelos teóricos do fascismo. Essa organização estaria envolvida no assassinato do general Schneider em fins da década de 70 – o general era simpático a Allende – e numa série de incidentes violentos. Desde outubro de 1972 esteve envolvida ativamente na preparação do golpe militar, e seus líderes, Pablo Gonzales e Roberto Thieme, tornaram-se campeões na defesa do regime militar. Ironicamente, mais tarde ambos voltaram-se contra Pinochet.

3. A política da Unidade Popular é descrita em detalhe em Ian Roxborough, Phil O’Brien, Jackie Roddick: State and Revolution in Chile (Mcmillan, London 1977). Daqui em diante nos referiremos simplesmente a Roxborough, 1977. Ver também Ann Zammit (editor), The Chilean Road to Socialism (Brighton 1973).

4. Os indicadores básicos podem ser encontrados em Roxborough, 1977, pp 131-32. Por um tratamento mais completo ver S Ramos, Chile, una economia de transición? (Chile, 1972).

5. O debate sobre Chile foi discutido em detalhe por este autor em The Left and the Coup in Chile , in International Socialism 2:22, inverno de 1984, pp 45-86.

6. Ver F Casanueva e M Fernandez, El Partido Socialista y la lucha de clases en Chile (Santiago, 1973). Ver também C Altamirano, Dialética de uma Derrota.

7. O argumento se baseia no fato de que a direita foi incapaz de chegar a um acordo sobre um candidato único às eleições de 1970, apresentando dois candidatos. Alessandri, representando o Partido Nacional, representava os interesses dos latifundiários e das grandes empresas financeiras. Após fricções internas graves, os democrata-cristãos apresentaram Radomiro Tomic, considerado da ala esquerda do partido. Os votos foram distribuídos de forma muito equilibrada entre os três, com Allende recebendo 36% dos votos, Alessandri 34,9% e Tomic 27,8%.

8. Ver Monica Threlfall, Shantytown dwellers and people’s power, in P O’Brien (editor), Allende’s Chile (Praeger, New York 1976) pp 167-91. Ver também J Giusti, Organizacion y participacion popular en Chile (FLASCO, Santiago 1973).

9. O MAPU foi formado em 1968 e tornou-se parte da coalizão da UP. A esquerda cristã formou-se em 1971 em torno de Jacques Chonchol, ex-ministro da agricultura de Frei.

10. Ver Gonzales, pp 65-68. Ver também a boa análise de Tom Bossert, Political Argument and policy issues in Allende’s Chile (University of Wisconsin Press, 1976).

11. De fato as empresas de cobre estiveram em situação extremamente favorável durante o governo Frei. Sua política de “chilenização” das minas significava que o Estado comprava ações das minas, a preços inflacionados, e se tornava responsável por todos os investimentos futuros. Esses investimentos eram financiados por mais empréstimos externos. Enquanto isso as grandes multinacionais do cobre ainda controlavam o mercado e o preço mundial.

12. A lista completa de firmas nacionalizadas está em Roxborough, 1977, pp 90-93.

13. O texto completo dos Estatutos está em Roxborough, 1977, pp 104. A explicação do próprio Allende está em Debray, Conversaciones con Allende (Mexico 1971) pp 116-17.

14. Ver Allende, Chile’s Road to Socialism (Harmondsworth: Penguin, 1973) cap. 9, pp 90-100. Joan Garces, um assessor chave de Allende, apresentou seu ponto de vista em Chile Hoy com seu argumento sobre o “poder dual no Estado”; ver Garces, El estado y los problemas tacticos del gobierno de Allende (Siglo XXI, Mexico 1973).

15. Sobre o desempenho econômico do governo durante o primeiro ano, ver Roxborough, 1977, cap. 4. Ver também Paul Sweezy in Monthly Review, dezembro de 1973, pp 1-11.

16. Os EUA também cumpriram sua parte, cortando todas as ajudas que não fossem assistência militar (a qual aumentou em volume) e cobrando a dívida externa chilena. Sobre o papel dos EUA, ver The ITT Memos: Subversion in Chile (Spokesman Books, Nottingham 1972); P Agee, Inside the company: A CIA Diary (Penguin, Harmondsworth 1975); e o relatório do Comitê Seleto do Senado norte-americano de 1975, Covert Action in Chile: 1963-1973.

17. Sobre a questão da terra ver I Roxborough, Agrarian policy in Popular Unity government (University of Glasgow Occasional Paper, 1974) e D Lehmann (editor), Agrarian Reform and agrarian reformism (Faber, Londres 1974). Sobre as greves e o balanço político do movimento operário ver Correo Proletario, número 2; Londres, novembro 1975, pp 4-5.

18. Esses comentários foram feitos por Radomiro Tomic e citados no Morning Star, 7 de agosto de 1972.

19. Ver Bossert, sobre todo o debate. As respostas do MIR e do MAPU estão nas coleções de documentos publicadas por Politique Hebdo (Paris) em 1974, e Roxborough 1977, cap. 4.

20. Ver MAPU (Politique Hebdo) cap. 2. A confusão do MAPU era mais profunda, pois se proclamava firmemente um partido revolucionário baseado no marxismo-leninismo (ver as minutas do seu V Pleno em El segundo año del gobierno popular (Santiago, novembro de 1972). O MIR vacilava extremamente em suas respostas (ver Punto Final).

21. Ver Chile Hoy n. 3, 30 de junho/ 6 de julho de 1972, p. 6. Vergara reapareceria e faria comentários quase idênticos após os incidentes de Lo Hermida (ver nota 26), em sua condição de subsecretário para o interior.

22. Toda a discussão está reproduzida na revista Chile Hoy n. 1, 16-22 de junho de 1972, pp 4-6. Me valerei de citações desta revista semanal muito boa (editado por membros do Partido Socialista mas contendo amplo e contínuo debate) desde o primeiro até o último número, de 30 de agosto de 1973. Chile Hoy e a revista Punto Final, do MIR, proporcionam o relato mais detalhado e acurado do processo chileno. Em relação a esse período em geral, ver Altamirano, especialmente cap. 4.

23. Ver Chile Hoy, n.6, pp 10-11.

24. Isso não quer dizer que foram ignorados. Chile Hoy e Punto Final passariam a discutir os cordones quase que continuamente. Ver Chile Hoy n.8, pp 4-5. O primeiro programa pode ser encontrado em Roxborough, 1977, pp 170-71, e em Allende.

25. Ver O’Brien p. 31. Ver também Hurtado Beca, “Chile 1973-81” in Gallitelli e Thompson (editores), Sindicalismo y regimenes militares en Chile y Argentina (CEDLA, Amsterdam 1982).

26. Ver Chile Hoy n.9, pp 6-7 e n. 10, pp 6-7.

27. Ver por exemplo a análise interessante de E Gonzales em International Socialist Review (New York), ou8tubro de 1973.

28. Ver P Santa Lucia, Industrial workers and struggle for power in O’Brien, pp 140-41. Ver também Chile Hoy n.8, pp 6-7 e n.11, onde Miguel Enriquez, secretário geral do MIR, dá a sua visão nas páginas 32 e 29. Ver também MAPU (Paris 1974), cap. 2, B.

29. Ver Chile Hoy, n.8, p.6.

30. “Na verdade por volta de 1973 os únicos democratas burgueses remanescentes no Chile eram Allende, O Partido Comunista e uma seção do Partido Socialista”, escreve C Kay, “The Chilean Road to Socialism: post mortem” in Science and Society, verão de 1976, p. 224.

31. Chile Hoy e Punto Final.

32. Fontes de informação sobre esse período são, como sempre, Chile Hoy e Punto Final, sobre os quais a maioria dos livros baseiam suas análises – ver, por exemplo, M Raptis, Revolution and Counter-Revolution in Chile (Allison and Busby, London 1974).

33. Citado em Punto Final, n. 170, p. 6.

34. Chile Hoy, n. 19, p. 5.

35. Sobre as batalhas travadas na mídia, veja o importante trabalho de Armand Mattelart e seu grupo CEREN, publicado na revista Cuadernos de la Realidad Nacional. Ver também M Gonzalez, Ideology and culture under Popular Unity in O’Brien, pp 106-127.

36. Chile Hoy, n. 19, p. 5.

37. Sobre a estratégia da direita, ver Ian Roxborough, Reversing the Revolution: the Chilean opposition to Allende” in O’Brien, pp 192-216; ver também J Petras e M Morley, How Allende fell (Spokesman, Nottingham 1974).

38. Punto Final, n. 170, p.6.

39. ibidem.

40. ibidem.

41. Chile Hoy, n. 20, p. 30.

42. Roxborough 1977, pp 167-8 e 172-4. Ver também Raptis pp 103-4.

43. Ver, por exemplo, Bossert e Correo proletario.

44. Ver Allende, pp 192-3, por exemplo.

45. Um argumento reproduzido, por exemplo, no panfleto Chile: trade unions and the resistance (Londres: Chile solidarity Campaign 1975) p. 11: “os cordones poderiam ser vistos como uma extensão da CUT a nível local”!

46. El segundo año… p. 383.

47. Bossert, p. 221.

48. Ver New Chile, Londres, n. 2, pp 2-3. Ver também MAPU.

49. Ver Garces, pp 214-17, que dá ênfase às entrevistas com General Prats, comandante do exército, em Ercilla e Chile Hoy. Garces afirma, por exemplo, que os ” homens do exército que concordaram em colaborar com o governo Allende não eram o tipo de militares que a direita reacionária imaginava ser”.

50. Chile Hoy, n.22, p. 32.

51. ibidem.

52. Ver o documento citado em Chile 1973.

53. Chile Hoy, n. 22, citado em Garces.

54. Punto Final, n.170, p.3.

55. Chile Hoy, n. 58, p. 5.

56. Estas eram as opiniões de Bosco Parra, líder da esquerda cristã, em uma entrevista a Punto Final, n. 171, pp 6-7.

57. O orador é Gabriel Aburto em Punto Final, n. 172, pp 4-5.

58. A urgência das discussões pode ser sentida nos documentos dos diferentes partidos da época – revistas como Chile Hoy, Punto Final e Puro Chile, assim como os jornais das várias organizações – El Siglo (PC), La Aurora (PS), El Rebelde (MIR), e o intenso debate conduzido em cada um deles.

59. Lenin, diante de um momento parecido no curso da revolução russa, apresentou em suas Teses de Abril uma análise incisiva das tarefas particulares, construindo o partido sobre a força e a combatividade das organizações de massas, mas sobretudo vencendo a batalha pela direção política do movimento. “Tanto quanto o governo ceda à influência da burguesia, é tarefa dos revolucionários apresentar uma explicação paciente, sistemática e persistente dos erros de suas táticas, e uma explicação especialmente adaptada às necessidades das massas” (Teses de Abril).

60. Um debate reproduzido plenamente em Punto Final, n. 173, seção de documentos, pp 1-22.

61. Ver E Gonzales.

62. Em uma entrevista no Punto Final n. 183, p. 4.

63. P. Santa Lucia, p. 147.

64. P. Santa Lucia, p. 148.

65. Ver Roxborough em O’Brien, pp 205-7.

66. Ver Roxborough 1977.

67. Os exemplos são inúmeros – a comissão política do MAPU, por exemplo, argumentou no dia 12 de fevereiro de 1973 pela necessidade de “exigir do governo uma resposta revolucionária” e construir “um pólo revolucionário no interior da UP” (in Chile 1973, pp 54-55). No debate de maio o dirigente das organizações operárias do MIR insistiu em que os cordones deveriam ser dirigidas pela CUT, etc.

68. Ver, como um exemplo particularmente tosco desse argumento, C Kay, The Making of a Coup in Science and Society, 1974 – reproduzido no Edinburgh Solidarity Campaign Bulletin, Chile Hoy, n.2, p.9. Para o argumento oposto ver H Prieto, The gorillas are amongst us (Pluto Press, London 1974), pp 34-36.

69. Ver Prieto.

70. Punto Final, 3/07/73, p. 13.

71. Ver Punto Final, n. 183.

72. Punto Final, n. 182, p. 4.

73. Descrito em Punto Final como “Un Congresso fuera de onda”, n. 187, p.9.

74. Ver Punto Final, n. 185, pp 16-18.

75. P Garcia, citando de Chile Hoy, n. 55.

76. De P Garcia; ver também Santa Lucia.

77. Prieto, p. 37.

78. Prieto, p. 39.

79. Ver Punto Final e Chile Hoy. A direção do Partido Socialista jactava-se de que a classe operária não tinha armas – ver Chile Hoy, n. 58 e 59.

80. Altamirano declarou, após a tentativa de golpe de 29 de junho: “Nunca a unidade entre o povo, as forças armadas e a polícia foi tão grande quanto agora (… e esta unidade crescerá com cada nova batalha na guerra histórica que estamos conduzindo” (cruelmente citado em Le Monde, 16-17 de setembro de 1973). Elo fazia eco às palavras do secretário geral do Partido Comunista, Luis Corvalan, no início de agosto em uma grande manifestação em Santiago. Infelizmente para ele, seu discurso foi publicado na edição de setembro de 1973 da revista Marxism Today do Partido comunista britânico.

81. Punto Final, n. 189, 31 de julho de 1973.

82. Roxborough 1977, p. 176.

83. Ver Gonzales em O’Brien, pp. 118-21.

84. Reproduzido, com trágica ironia, na revista Marxism Today de setembro de 1973.

85. Ver entrevista com o secretário geral do MIR, Miguel Enriquez, em Punto Final n. 189, 31 de julho de 1973, pp. 4-7.

86. Ver Gonzales, 1984.

87. Ver o folheto do Partido Comunista britânico, Chile: Solidarity with Popular Unity, Londres.

88. É um dos paradoxos da experiência chilena que o grande conjunto de escritos e análises do processo chileno de 1970-73 produzido desde o golpe tenha sido motivado, na maior parte, para justificar ou legitimar uma ou outra perspectiva durante o período da UP. Contudo, no momento imediato após o golpe a ênfase estava voltada à selvageria e barbárie dos dias e semanas que se sucederam ao golpe. Dos vários relatos da época, podemos destacar os seguintes: Chili:le dossier noir (Gallimard, Paris, 1974); R. Silva, Evidence on the terror in Chile (Merlin, London, 1975); a revista publicada pelo Chile solidarity Campaign (GB), Chile Fights, do final dem 1973 em diante; Chile: The story behind the coup (NACLA, New York, 1973); e o importante discurso de E. Berlinguer, secretário geral do Partido Comunista Italiano, em Marxism Today, fevereiro de 1974.

 

Esse post foi publicado em Socialismo e marcado , , , . Guardar link permanente.

Uma resposta para Chile 1972-73: Revolução e contrarrevolução – Mike Gonzalez

  1. Pingback: A Batalha do Chile Parte I A Insurreição da Burguesia | Socialismo sem Fronteiras

Deixe um comentário